O jejum cervejeiro dos monges: uma tradição quaresmal
⏳ No século XVII, os frades do mosteiro de Neudeck ob der Au, na Baviera, devotos de São Francisco de Paula, desenvolveram um costume curioso para o período da Quaresma: implementaram um jejum com cerveja. Evitavam, dessa forma, o consumo de alimentos que os preceitos religiosos restringiam para aquele período sacro.
Mesmo que aparentemente contraditório, esse hábito foi, na verdade, uma forma de penitência que confluiu espiritualidade com necessidades práticas da vida monástica naquele local. E acredita-se que até o mais alto escalão da própria Igreja Católica aprovou esse costume.
Além disso, essa prática dos membros mendicantes beneditinos da Ordem dos Mínimos (Paulaner Orden) de Munique é parte fundamental da história de um estilo e de uma cervejaria icônicos: a Doppelbock e a Paulaner!
Ora et labora et bibe
Trazidos da Itália em 1627, os frades representavam os esforços da Contrarreforma em prol da manutenção do catolicismo na Baviera – até hoje a região mais católica da Alemanha. Radicados ali, converteram-se em pouco tempo à produção local de cervejas, sob a então recente influência das Bocks de Einbeck, na Baixa Saxônia. Inicialmente para consumo próprio, as brassagens monásticas logo se voltaram também para comercialização extramuros, antes mesmo de os religiosos conseguirem uma licença para aquela atividade.
É de uma reclamação, aliás, que temos o registro documental mais antigo dessa operação dos mendicantes paulinos, em 1634. A cervejaria Paulaner marca a data como sua “fundação”. Supostamente o momento em que também teriam herdado o Braurecht, a permissão de produção, da família de um de seus membros. Mas o marco vem, na verdade, de uma queixa que os cervejeiros de Munique manifestaram diante da concorrência inesperada que os monges passaram a representar.
Sabe-se que, desde aquele tempo, os frades, em sua produção, observavam as diretrizes da Reinheitsgebot, a Lei da Pureza da Cerveja de 1516. No entanto, mais detalhes sobre como elaboravam cervejas no século XVII são um tanto opacos. Ainda assim, é essa a época em que podemos situar os primórdios do desenvolvimento do jejum quaresmal cervejeiro entre os membros da Paulaner Orden.
“Pão líquido”
Apesar de a produção dos frades ter um feitio comercial desde os 1600, os monges não destinavam todas as receitas que produziam ao grande público. Uma delas, restrita aos habitantes do mosteiro, era chamada de Salvator (“Salvador” em latim), sendo descrita como nutritiva e deleitosa. Especialmente quando produzida na primavera, sendo mais encorpada, feita justamente sob medida para o período quaresmal. Costume esse, de “fortalecimento” da receita, iniciado, acredita-se, em 1651. Era um “pão líquido“, de fato. 🥖
Se criada diante da necessidade de nutrimento durante a Quaresma, ou valorizada e “reforçada” nesse período por seu constatado potencial nutricional, não se sabe. Porém, a ligação da receita com aquele momento, sublinhada pelo jejum com cerveja, é bastante forte.
Mas o fato é que a Salvator histórica é a precursora da Doppelbock, um dos marcos da Escola Alemã. É de se salientar, contudo, que as receitas dos séculos XVII e XVIII diferiam bastante das versões atuais, sendo provavelmente mais escuras, menos doces e com carbonatação reduzida, devido às técnicas da época, sobretudo à maltagem e à torra menos precisas e deliberadas da cevada.
Santa cerveja
Acredita-se que a hipótese mais provável para o nome Salvator tenha sido uma denominação anterior para a bebida, Sankt-Vater-Öl, ou Sankt-Vater-Bier, a “Cerveja do Santo Padre”. Dedicada, claro, ao patrono e fundador da Ordem dos Mínimos, São Francisco de Paula. E valorizada sobretudo pelo nutrimento necessário que provinha, alinhado, em linhas gerais, com os preceitos da Igreja durante a Quaresma.
Mesmo um tanto contraditória, a prática do jejum com cerveja seguia os princípios de abstinência quaresmal, que vetavam determinados alimentos e ditavam a redução do número de refeições diárias. Reza a lenda que até o papado teria aprovado, no século XVIII, o referido costume, enquanto forma válida de penitência para os quarenta dias que antecedem a Páscoa, contanto que a bebida fosse produzida pelos próprios monges e consumida com moderação. O que ilustra certa plasticidade da Igreja diante das realidades locais de seus sacerdotes e fiéis.
Essa tradição, porém, quase desapareceu durante a secularização da Baviera em 1803, quando o mosteiro original foi confiscado e dissolvido, seguindo o avanço de Napoleão Bonaparte sobre os territórios germânicos. Felizmente, cervejeiros laicos que assumiram a Paulaner no século XIX preservaram a receita da Salvator.
O nome Dopplebock também parece ter sido atribuído por pessoas de fora do claustro, no caso, por seus consumidores não-religiosos, para quem a cerveja encorpada começou a ser fornecida legalmente em 1780. Gente que a considerava, realmente, uma “bock dupla”, distinta das bocks de Einbeck, mais forte e encorpada, peculiar ao fazer cervejeiro daqueles monges. Nomenclatura essa que, por sua vez, serviu de base para a catalogação do estilo propriamente dito no século XX.
Ainda assim, a prioridade para a Paulaner foi a manutenção do nome Salvator, cujos direitos detém desde 1896, depois de vencer uma disputa judicial contra outras cervejarias. Uma designação que estampa as Dopplebocks da marca até hoje.
Ecos na cultura bávara
Embora o jejum com cerveja não seja mais praticado, seu legado permanece. A moderna Salvator mantém a tradição como uma das Doppelbocks mais emblemáticas do mundo, embora, como dito, com um perfil um tanto diferente das suas antecessoras históricas.
O impacto dela também é observado numa tradição seguida por muitas cervejarias posteriores, que adotaram o sufixo “-ator” em suas Doppelbocks. Como exemplos, é possível citar a Maximator, da Augustiner, e a Triumphator, da Löwenbräu.
As observações quaresmais dos frades paulinos também são, de certo modo, invocadas anualmente pela Paulaner na atualidade. A cervejaria realiza todo o mês de março o Salvator-Anstich, cerimônia de abertura e degustação do primeiro barril de Doppelbock do período pré-Páscoa. O evento, bastante típico, dá início à Starkbierzeit, a “temporada da cerveja forte” – também chamada de Salvatorzeit –, conhecida vulgarmente como “Oktoberfest de março”, um dos festivais mais importantes do calendário bávaro, com registros de realização que remontam, pelo menos, a 1751!
Starkbier, aliás, é outro nome para as Doppelbocks.
Mais que uma cerveja, um ícone
A história da Salvator e do jejum com cerveja dos monges paulinos representa uma fascinante interseção entre fé, cultura e subsistência. O que começou como uma prática ascética se transformou em tradição e legou um estilo icônico, fortemente ligado a uma Escola, a uma região e a uma cervejaria em particular.
Hoje, essa herança é celebrada em razão da criatividade humana em face de restrições devocionais e também de recursos disponíveis num contexto particular. Ela atesta, como as de outros estilos e Escolas, a contribuição das ordens religiosas, sobretudo as beneditinas, para o desenvolvimento cervejeiro em várias partes da Europa.
O legado da Salvator e da Paulaner continua a inspirar. Que essa história também lhe inspire.
Saúde e Feliz Páscoa! 🐰🍻