Quais são as possibilidades de se levar cervejas selvagens nos restaurantes? Para responder essa pergunta, vamos ouvir o episódio 12 da segunda temporada de Encontros Selvagens com Patrícia Brentzel (Sommelière Beba bem em casa) e Bruno Bertoli (Sommelier Beverino), com mediação da Carolina Chieranda.
Encontro Selvagem é um programa realizado pelo canal Surra de Lúpulo, Abracerva, e com apoio nesta temporada do Conselho Federal de Química, CFQ. Sigam @encontroselvagem no Instagram e não percam nenhum conteúdo. Apresentado por Diego Simão (Cozalinda), Bia Amorim (Farofa Magazine), Ludmyla Almeida e Leandro Bulkool (ambos do Surra de Lúpulo).
Ouça na íntegra:
Cervejas selvagens nos restaurantes
Carol, nossa mediadora, explica que Bruno e a Patrícia têm como atividade principal os vinhos naturais e biodinâmicos. Emendando na primeira pergunta:
Vocês que são do mundo dos vinhos, o que viram nas cervejas selvagens que fez com que acreditassem nesse mercado e quisessem trabalhar com esse tipo de produto?
Patrícia considera que o mais interessante em sua trajetória é que começou pelo caminho convencional, estudando em escolas tradicionais de vinho como a BES. Após 10 anos, dos 20 que tem na área, ela começou a se desconectar desse modelo, pois não fazia mais sentido para ela, não só os vinhos, mas toda a indústria envolvida. Para ela, o vinho natural representa mais do que a bebida em si, mas também pessoas e ancestralidade. Fez uma transição de carreira, o que foi difícil, mas hoje trabalha exclusivamente com isso.
Ela destaca que a indústria convencional paga as contas em um país que não consome muito vinho. Durante a pandemia, houve um aumento temporário no interesse por vinhos naturais, mas foi passageiro. Quando fala sobre o mundo das cervejas, especialmente as ácidas de fermentação espontânea, vê um grande potencial. Ela acredita na reeducação dos consumidores e, para isso, guia seus clientes com cuidado, evitando experiências iniciais muito radicais, para que possam entrar nesse universo de forma mais agradável.
Já Bruno se dedica exclusivamente aos vinhos naturais há 15 anos. Diferente de Patrícia, ele começou a se interessar por vinhos enquanto estudava Ciência Política na universidade na Itália. Sua primeira experiência marcante foi com um vinho Grillo do produtor Nino Baracco, em Marsala, uma epifania que mudou sua vida. Bruno passou 10 anos na Europa, divididos entre França e Itália, onde trabalhava durante o dia com Ciência Política e à noite como sommelier, construindo seu repertório no mundo dos vinhos.
Ao voltar para o Brasil, inicialmente por razões ligadas à Ciência Política, ele não conseguiu se afastar do vinho. Iniciou sua jornada no restaurante Capivara e, posteriormente, consolidou seu espaço com o Beverino, um híbrido entre bar, restaurante e loja dedicada exclusivamente a vinhos naturais. Lá, a comida também segue o princípio de usar ingredientes de pequenos produtores, quase todos orgânicos.
Ele percebe que, ao longo dos anos, as cervejas de fermentação espontânea têm ganhado tração, embora ainda em menor variedade comparadas aos vinhos naturais. No Beverino, ele busca trabalhar com essas cervejas, valorizando seu perfil de acidez e versatilidade nas harmonizações. Ele vê grande potencial nesse campo e se empenha em apresentá-las aos clientes de forma contextualizada, apesar dos desafios.
Patrícia continua dizendo que percebe que muitas pessoas ficaram traumatizadas com o vinho natural. Ela acha triste porque, assim como na cerveja, o vinho natural é algo que muitas pessoas ainda estão aprendendo. Profissionais que vieram da indústria de vinhos convencionais e migraram para pequenos projetos têm mais controle ao fazer vinhos naturais, mesmo sem muita intervenção. Esses profissionais sabem o que não fazer, o que dá a eles uma vantagem. Entretanto, quem apenas decidiu fazer vinhos naturais e ficou trocando ideias, embora tenha seu valor, às vezes não obteve bons resultados. Isso causou um certo trauma.
Ela destaca a importância do cuidado na introdução de cervejas ácidas em bares e restaurantes. A recepção calorosa que ela teve no evento reflete a necessidade de educar as pessoas que trabalham com essas cervejas para evitar mal-entendidos, como já aconteceu com os vinhos naturais. Patrícia acredita que é crucial formar bem essas pessoas para evitar a propagação de informações incorretas.
“Eu trabalho muito com consumidor final, eu tenho várias frentes de trabalho, né? E aí, de repente, eu tô com o consumidor final, o consumidor final, tem sulfitos? É a primeira coisa que a pessoa pergunta e ela nem sabe, né, o que que é. Então, assim, tem várias coisas que se tornaram, sabe, uma coisa negativa com relação aos vinhos naturais que a gente precisa consertar.”
O que vocês acham que o consumidor espera quando você oferece esse tipo de produto? Por exemplo, o cara tá sentado numa mesa num restaurante e você resolve oferecer uma cerveja selvagem. O que você acha que a expectativa que ele cria sobre o produto?
Bruno destaca a importância de escolher bem a terminologia ao vender cervejas de fermentação espontânea. Usar termos como “cerveja selvagem” pode predispor as pessoas a algo diferente e experimental. Ele acredita que não é necessário consolidar um termo único, mas permitir a coexistência de vários termos para serem usados em diferentes contextos.
No contexto dos vinhos naturais, os clientes esperam algo diferente, especialmente se forem mais informados, buscando acidez, que ele considera fundamental para a harmonização. Bruno vê a acidez como um grande diferencial, oferecendo maior versatilidade nas combinações. Portanto, ao falar em “cerveja selvagem”, é importante comunicar isso ao cliente mais disposto a experimentar algo novo. Patrícia concorda com Bruno e destaca a importância de preparar as pessoas. Ela acredita que, embora seja ótimo se a pessoa já estiver aberta a novas experiências, é essencial instigá-la a provar. A expectativa de algo diferente é natural, mas a forma como se conduz essa introdução é crucial.
Ela vê a criação de eventos como uma forma de proporcionar uma experiência completa, onde a bebida, seja cerveja ou vinho natural, é combinada com a comida, aumentando a satisfação do cliente. É, para ela, uma questão de vender experiências.
No contexto dos vinhos naturais e das cervejas selvagens, parece que encontramos um idioma comum. No entanto, ainda há muitas dificuldades a serem enfrentadas. Temos um longo caminho pela frente. Quais vocês acham que são os maiores obstáculos para a venda desses produtos hoje, especialmente para restaurantes? Seria a imagem cultural que esses produtos carregam? O preço? O que vocês acham?
Patrícia acredita que a cultura influencia muito o consumo de vinho no Brasil, que se concentra principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Apesar de trabalhar em várias importadoras e viajar pelo país, ela percebe que o consumo de vinho ainda é restrito a essas regiões.
Ela também menciona que os impostos tornam os vinhos mais caros, dificultando o acesso. Os vinhos naturais, em particular, são produzidos em pequenos lotes e não têm escala industrial, o que aumenta o preço. Patrícia destaca a dificuldade dos consumidores brasileiros em pagar valores elevados por vinhos, como 150 reais, e sugere que uma solução pode ser consumir menos, mas com melhor qualidade.
Ela enfatiza a importância de educar os clientes sobre os benefícios dos vinhos naturais, especialmente em termos de saúde e qualidade, promovendo um consumo mais consciente. Em relação às cervejas selvagens, Patrícia observa que também enfrentam desafios semelhantes em termos de preço e valor agregado. Para ela, superar esses obstáculos é uma luta diária, envolvendo aspectos culturais, econômicos e gastronômicos.
Bruno comenta sobre a terminologia usada para vinhos naturais e selvagens. Ele acha o termo “vinho selvagem” interessante e atrativo, mas não é comumente utilizado. Em vez disso, usam o termo “natureba”, que algumas pessoas consideram pejorativo, associando-o a vinhos de baixa qualidade, produzidos sem cuidado. No entanto, “natureba” serve para abranger vinhos orgânicos, biodinâmicos, naturais e sustentáveis, evitando o uso excessivo de “mínima intervenção”.
Ele destaca a dificuldade de comunicar corretamente esses conceitos em postagens e eventos, pois os vinhos naturais exigem explicações detalhadas sobre práticas agrícolas e intervenções mínimas. Bruno enfatiza a importância de categorizar corretamente os produtos, como vinhos orgânicos e biodinâmicos, para evitar mal-entendidos e erros, especialmente no contexto das cervejas ácidas, onde o culto ao defeito pode ser um problema.
Bruno afirma que, para os vinhos naturais, é necessário um esforço maior para educar e convencer os clientes, ao contrário dos vinhos convencionais, que são mais fáceis de vender. Ele passa muito tempo explicando e promovendo vinhos naturais, interagindo diretamente com donos de restaurantes, sommeliers e consumidores em eventos, ressaltando a necessidade de fazer as coisas corretamente desde o início para evitar problemas futuros.
Patrícia compartilha uma experiência recente, ressaltando a importância da interação direta com os clientes. Ela não trabalha mais no salão, mas frequentemente visita clientes. Recentemente, esteve em um local que vende choripan e montou uma mesa de degustação. Apesar de estar cansada após um longo dia, ela manteve o entusiasmo e explicou pacientemente sobre os vinhos naturais para cerca de 15 clientes.
Todos ficaram impressionados e gostaram dos vinhos, pois ela escolheu rótulos mais acessíveis para garantir uma boa experiência inicial. Patrícia acredita que isso é um passo importante para familiarizar as pessoas com vinhos naturais. Mesmo cansada, ela se sente realizada ao ver a satisfação dos clientes, destacando a paixão pelo trabalho.
Bruno discute a importância de esclarecer terminologicamente o que é vinho natural e cerveja de fermentação selvagem. Ele enfatiza que essa clareza beneficia tanto os produtores quanto os profissionais de venda, facilitando a comunicação com os consumidores.
Para ele, é essencial definir esses termos para evitar mal-entendidos e debates desnecessários que podem prejudicar a imagem desses produtos. Por exemplo, sem uma definição clara de vinho natural, surgem críticas de que são vinhos defeituosos ou mal feitos, comparados desfavoravelmente aos vinhos industriais.
Bruno acredita que uma terminologia clara ajuda a consolidar o conceito desses produtos, tornando mais fácil a divulgação e venda. Ele destaca que essa clareza é crucial não apenas para quem vende, mas também para quem produz, garantindo uma narrativa coesa e uma compreensão unificada do que são vinhos naturais e cervejas de fermentação selvagem.
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