Olá, pessoal! Boas vindas à mais um Surra de Lúpulo! No episódio da semana, vamos falar de Hildegard Von Bingen e, com isso, inaugurar a série documental de personalidades históricas que marcaram o universo da cerveja. Essa série contou com a colaboração do Sérgio Barra (sommelier e historiador), que foi responsável por toda pesquisa do tema selecionado.
Ouça o episódio na íntegra:
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Conhecendo a mãe do lúpulo: Hildegard Von Bingen
Durante o verão do ano de nosso senhor de 1098, na cidade de Bermesheim Von der Höhe, no sudoeste do que conhecemos hoje como Alemanha, nasceu a décima filha de Hildebert e Mechtild, pessoas da pequena nobreza e que serviam aos condes de Sponheim. O nome da família foi perdido no tempo, mas acredita-se que fosse os “von Stein”, mas o nome da criança nunca será esquecido: Hildegard.
Aos 3 anos de vida, Hildegard teria tido sua primeira visão divina, uma luz de brilho deslumbrante que fez sua alma tremer. Tal toque em sua alma se repetiu ano a ano, até o ponto que sua família transformou surpresa em desconfiança. E então a esperta criança passou a omitir suas visões.
Como era de costume, as famílias com muitos filhos destinavam ao menos um à vida religiosa. Hildebert e Mechtild fizeram isso, e após o oitavo verão de Hildegard ela foi entregue para tal função, devido a sua saúde debilitada e aos relatos de suas visões.
Ela foi recebida por Jutta, que era a mestra do pequeno mosteiro beneditino de Disibodenberg e filha dos condes de Sponhein. O mosteiro cuidou de Hildegard e deu acesso à educação. Lá ela aprendeu a ler por meio das escrituras sagradas e elementos da música.
Somente em 1.114, ao completar seus 16 anos de idade, ela professou seus votos definitivos e assim ingressou na Ordem de São Bento.
Durante os anos no mosteiro de Disibodenberg, ela continuou a ter visões e ouvir coisas. Tais visões a deixavam exausta e constantemente doente. Ainda assim, viveu a rotina do mosteiro com seus afazeres até o ano de 1.136, quando Jutta faleceu e ela assumiu o papel de mestra do mosteiro. Hildegard tinha então 38 anos.
Mesmo com todo o desprezo generalizado pelas mulheres daquela época, é inegável que Hildegard foi uma grande estudiosa teológica. Em 1.141 ela teria tido a sua visão mais importante.
“E sucedeu no 1.141º ano da encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses, que os céus se abriram e uma luz ofuscante de excepcional fulgor fluiu para dentro de meu cérebro. E então ela incendiou todo o meu coração e peito como uma chama, não queimando, mas aquecendo… e subitamente entendi o significado das exposições dos livros, ou seja, dos Salmos, dos Evangelhos e dos outros livros católicos do Velho e Novo Testamentos”.
Nessa visão, uma voz lhe ordenou três vezes: “Oh mulher frágil, cinza de cinza e corrupção de corrupção, proclama e escreve o que vês e ouves”. Junto a esses relatos que ela documentou em suas notas autobiográficas, ela também revela que não seguiu tal ordem, por considerar-se indigna e com hesitação e procurou Bernardo de Claraval (quem fora canonizado em 1.174) em busca de orientação, que a orientou a confiar em seu julgamento e atender ao chamado que recebera.
Bernardo também falou com o papa Eugênio III para ler alguns de seus escritos iniciais diante de uma reunião, reunido na cidade de Trier. Suas visões e escritos foram confirmados por uma comissão de teólogos que foi enviada para verificar a autenticidade, isso garantiu à Hildegard uma carta aprovando suas visões assinada pelo Santo Papa e isso era o que bastava para lhe dar toda segurança.
Foi no ano de 1.148 que uma visão a ordenou deixar Disibodenberg e junto com outras monjas revitalizar o antigo mosteiro de Rupetsberg, em Bongen am Rhein, que estava arruinado. Mesmo com toda a resistência no clero e dos monges de Disibodenberg, que influenciaram até suas monjas, em 1.150 as ruínas de Rupertsberg estavam restauradas e seu grupo devidamente instalado.
Foi em Rupertsberg que Hildergad escreveu em 1.151 o Liber Scivias Domini (Livro do Conhecimento dos Caminhos do Senhor), que se tornou seu livro mais conhecido e apreciado durante o seu tempo em vida. São 3 volumes que relatam suas visões.
Durante os anos de 1.151 e 1.158, o interesse de Hildegard pela medicina, pela causa das doenças e pela cura delas se materializou em dois livros, chamados Physica – Liber Simplices Medicinae (Física – Livro da Medicina Simples) e no Causae et Curae – Liber compositae medicinae (Causas e curas – Livro da medicina complexa). E aí que para nós, apaixonados por cerveja, podemos encontrar o capítulo 61 do primeiro livro, chamado de “De Hoppho” ou em tradução, Sobre o Lúpulo. Neste capítulo a monja trata do fato que o lúpulo não faria muito bem aos homens. Mas, em compensação, seria um bom conservante para bebidas. Veja essa transcrição de Martyn Cornell.
“O lúpulo é quente e seco, tem umidade moderada e não é muito útil para beneficiar o homem, porque faz crescer a melancolia no homem, entristece a sua alma e oprime seus órgãos internos. Mas também, como resultado do seu amargor, ele mantém algumas putrefações fora das bebidas, às quais pode ser adicionado para que durem muito mais tempo.”
Embora Hildegard trate a flor de lúpulo sendo aplicada às bebidas e não diretamente sobre cervejas, no capítulo posterior conseguimos ter indícios que a monja não apenas entendia dos efeitos do lúpulo, quanto entendia também de produzir cerveja. Escuta só o que ela escreve: “Se você também quiser fazer cerveja de aveia sem lúpulo, mas apenas com gruit, você deve fervê-la depois de adicionar um grande número de folhas de freixo. Esse tipo de cerveja limpa o estômago de quem bebe e deixa seu coração leve e alegre.” Martyn Cornell.
O mesmo Cornell que citamos antes, junto a outros autores, é categórico em afirmar que o primeiro documento a fazer menção ao uso do lúpulo na cerveja não é de autoria da Hildegard, mas vem de uma série de estatutos sobre a administração de uma abadia escritos pelo abade Adalhard do mosteiro beneditino de Corbie, norte da França, em 822. Mas, isso, é uma outra história.
Os conhecimentos de Hildegard iam além da fé, medicina e cura. Ao concluir os livros que já citamos ela trabalhou em mais dois: um deles é o Liber Vitae Meritorum (Livro dos méritos da vida), um tratado que desenvolve sobre a oposição entre os vícios e as virtudes. Este foi um dos primeiros tratados de ética religiosa a incluir uma detalhada descrição e explicação do purgatório.
Em 1.160, Hildegard realizou algo inédito para as mulheres: empreendeu diversas viagens pela Alemanha e França para pregar e foi a primeira mulher a ser considerada uma autoridade em assuntos teológicos. Em suas pregações denunciou os vícios do clero e combateu as heresias, em particular a dos cátaros, um grupo que, com o discurso que toda a criação do mundo material era obra de satã – ou de um deus mau -, estava conquistando muitos seguidores na Germânia.
Outra quebra de paradigma de Hildegard foi sua visão sobre a sexualidade, que ela tratou por duas óticas, a teológica e a fisiológica. Pela perspectiva teológica, ela comparava o desejo humano à fertilidade da terra, que dava à luz uma infinidade de riquezas. Ela via o corpo como um instrumento da alma que devia ser disciplinado para que se formasse uma cooperação entre ambos, potencialmente confortável e prazerosa, e para que o objetivo primeiro da salvação da alma pudesse ser alcançado. Na sua abordagem fisiológica da sexualidade humana, ela fez uma análise detalhada do desejo e do prazer. Via o ato sexual entre homem e mulher dentro do matrimônio positivamente, comparando-o à música, e o corpo humano a um instrumento musical. Foi a primeira autora a escrever sobre sexualidade e ginecologia de um ponto de vista feminino.
Ela escreveu ainda o Livro das Obras Divinas, onde abordou as semelhanças entre homens e mulheres. Os dois gêneros seriam complementares. Mas, a mulher seria mais perfeita ou ontologicamente superior ao homem. Hildegard traçou um painel histórico dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres: a maternidade ou a vida religiosa. Embora não visse nenhum deles como de todo satisfatório, sua postura era ambivalente sobre esse tema, provavelmente pressionada pelo seu contexto social e histórico.
Seu olhar teológico, também muito original, tinha uma forte tendência a analisar tudo em uma perspectiva holística. Sua concepção mística integrava o universo em uma densa rede de simbolismo, alegorias e metáforas. Para ela, a solução para os problemas do mundo deveria vir da união cooperativa e harmoniosa entre corpo e espírito, entre a natureza, a vontade humana e a graça divina.
Além de todos os temas já citados, botânica, medicina, produção de cervejas, teologia, sexualidade, Hildegard criava produções poéticas-musicais, todas de cunho moralizante e pedagógico e totalmente ligadas aos seus escritos teológicos. Suas composições foram criadas para serem cantadas por mulheres e a temática do feminino é recorrente em seus textos.
Hildegard relacionava a corporalidade da prática musical à musicalidade do corpo!
As reiteradas menções ao prazer do canto e ao corpo, particularmente ao feminino, têm dado margem a uma série de especulações contemporâneas sobre as possíveis ligações de sua concepção musical com as problemáticas do homoerotismo e da sublimação do desejo no contexto do ambiente monástico. A produção de Hildegard está compreendida em duas obras: o auto sacro Ordo Virtutum (A Ordem das Virtudes) e a Symphonia armonie celestium revelationum (Sinfonia da Harmonia das Revelações Celestes), uma coletânea heterogênea de 77 canções para uso litúrgico ou semi-litúrgico.
Em 1.165, foi fundado um novo mosteiro em Eibingen e suas tarefas foram duplicadas, hoje esse local é conhecido como Abadia de Santa Hildegard. Para cuidar das monjas sob seus cuidados, Hildegard visitava o novo mosteiro duas vezes por semana. Dizem que durante essas visitas ela realizou suas primeiras curas milagrosas e exorcismos.
Já quase octogenária, as viagens e a atividade como mestra de dois mosteiros exigiam muito da sua saúde. Permaneceu sempre em atividade, escrevendo, debatendo com outros religiosos e atendendo à crescente multidão de pessoas que vinham em busca de seu conselho e dos remédios que preparava. Morreu em 17 de setembro de 1179, aos 81 anos de idade.
Com a morte da sua fundadora o mosteiro de Rupertsberg começou a declinar, sendo destruído na Guerra dos Trinta Anos, no início do século XVII. O mosteiro abrigou as relíquias da santa até 1632, quando foram transferidas para o mosteiro de Eibingen, assim como as monjas restantes. Algumas ruínas remanescentes foram restauradas e reutilizadas até o século XIX. Em 1857 o que restava foi demolido para dar lugar à construção de uma ferrovia.
Hildegard foi canonizada em 1.584 pelo Papa Gregório XIII. E, em 2012, o Papa Bento XVI concedeu a ela o título de Doutora da Igreja.
Uma prova de que ciência e religiosidade não precisam se opor uma à outra.
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Referências bibliográficas:
CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/. Acesso em 25/05/2021.
COSTA, Marcos Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans / Form / Ação. Marília, v. 35, 2012.
Hildegarda de Bingen. Wikipedia. Disponível em: Hildegarda de Bingen – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org).
MARTINS, Maria Cristina. Hildegarda de Bingen: Physica e Causae et Curae. Cadernos de Tradução. Número Especial, 2019, p. 159-174.
MARTINS, Maria Cristina. Physica: uma das obras científicas de Hildegarda de Bingen. Rónai: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios. vol. 8, nº1, 2020, p. 3-18.
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Hildegarda de Bingen e as sutilezas da natureza de diversas criaturas. Anais da 4ª Jornada Científica CMS Waldir Franco. 2002.
Ouça também: Cerveja e Religião com Sérgio Barra | Ep.145
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