Hoje, o Encontro Selvagem aborda a história da cerveja ácida no Brasil e como elas conquistaram o paladar dos brasileiros no decorrer dos anos; o bate papo é liderado por André Junqueira (Morada Cia Etílica), Alessandro (Way Beer) e Nuno (Liffey Brewpub).
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Ouça na íntegra:
História da cerveja ácida no Brasil
Por volta de 2011 e 2012, explica André Junqueira, alguns destemidos exploradores do mundo cervejeiro começaram a se aventurar no território das cervejas acidificadas. Experimentando com diferentes micro-organismos e técnicas de fermentação, eles deram os primeiros passos nesse novo universo.
Era comum levar esses experimentos para festivais, como o Mestre Ali fazia, e apresentá-los ao público. Naquela época, era tudo muito novo e estranho para as pessoas. Imagine o choque que era experimentar uma cerveja ácida pela primeira vez há uma década! O Brasil ainda estava se familiarizando com esse estilo de cerveja, com apenas alguns poucos exemplares importados disponíveis.
Foi através de encontros com outros cervejeiros caseiros, como os irmãos Ropelato de Santa Catarina, que se aprendeu mais sobre essa vertente cervejeira. Eles já estavam explorando o mundo das cervejas ácidas, e encontrávamos mais aventureiros como eles nos festivais da época.
À medida que o tempo passava, mais rótulos de cervejas ácidas começaram a surgir, e o público brasileiro começou a se acostumar com essa novidade. Hoje, vemos uma variedade incrível de cervejas ácidas sendo produzidas em todo o país, mas é importante lembrar da coragem e da curiosidade dos pioneiros que abriram caminho para essa revolução cervejeira.
Em março de 2013, durante um festival em Blumenau, que a linha Sour Notch foi lançada pela primeira vez. Diferente de muitos outros, ao lançar essa linha, eles colocaram diretamente no mercado. As primeiras produções contaram com cerca de 3 mil garrafas de cada sabor, totalizando 9 mil garrafas de uma vez só. Batizaram essa linha de sour minote, e logo perceberam que estavam à frente do seu tempo.
Eles receberam uma enxurrada de e-mails reclamando que as cervejas estavam azedas. Foi um choque para muitos, que ainda estavam se acostumando com as cervejas artesanais naquela época. E não ajudou que, na mesma época, lançaram sua Brett IPA em garrafas de 375ml, causando ainda mais confusão sobre seus produtos.
Ele lembra de uma colaboração especial que fez com a Mikkeller em 2013. Convidados para participar do Copenhagen Beer Celebration, acabaram criando uma cerveja com eles. Era uma cerveja sour, fermentada com frutas em barris de madeira. Foi uma experiência reveladora, e Junqueira aprendeu muito sobre o processo de fazer sours.
Voltando para Curitiba, ele testou várias frutas para suas cervejas, mas as que mais se destacaram foram a cerola e a graviola. Lançaram também uma versão de morango para dar uma ideia do que estavam fazendo. As pessoas ficavam intrigadas e especulavam sobre como faziam as cervejas, chegando até a sugerir que adicionavam ácido lático às cervejas prontas.
A abordagem rápida e eficiente para produzir sours foi pioneira e teve um impacto significativo no mercado brasileiro. Muitos até hoje mencionam que a Sour Notch foi a primeira sour que experimentaram. Ela se espalhou por todo o país, alcançando lugares que nunca imaginaram. E assim, mesmo com todas as confusões e desafios, Junqueira está orgulhoso de ter feito parte dessa revolução cervejeira no Brasil.
Em 2013, Nuno observava os desafios enfrentados por aqueles que tentavam vender sours, enquanto ele próprio lidava com as dificuldades de comercializar IPA ao fundar sua própria cervejaria. Ele compreendia bem o que significava passar por essas situações. Com o passar dos anos, diversas iniciativas surgiram no mercado brasileiro para a produção de cervejas sour, muitas delas regionais e individuais. No entanto, a partir de 2016, houve uma organização mais abrangente.
Nesse ano, Nuno e outros do ramo reuniram as informações disponíveis, principalmente sobre o método Kettle Sour, que já estava em uso, incluindo a adição de frutas. A Catarina Sour não reinventou a roda, mas trouxe uma organização maior para toda a cadeia cervejeira, desde os cervejeiros caseiros até os consumidores finais.
Eles se lembram de uma palestra anterior, na qual Carla mencionou que Gordon Strong falou sobre a necessidade de parâmetros e representatividade para que um estilo de cerveja se tornasse futuro. Foi exatamente isso que aconteceu em 2016, quando surgiu o termo “Catarina Sour”, unificando várias fábricas já produzindo esse estilo. As associações cervejeiras desempenharam um papel crucial, especialmente em Santa Catarina, promovendo workshops de produção de Sour para reduzir o receio das fábricas em abraçar o estilo.
Os cervejeiros caseiros também foram importantes nessa história. A forma como a Catarina Sour foi apresentada ao consumidor final e os parâmetros estabelecidos foram fundamentais. Yuri, um sommelier do Beer Villa em Blumenau, contribuiu significativamente ao adaptar o modelo de descrição de estilos do BJCP para a Catarina Sour.
Esse formato se espalhou rapidamente pelos grupos de WhatsApp de cervejeiros caseiros, influenciando concursos cervejeiros amadores e, posteriormente, concursos regionais e nacionais profissionais. A criação de parâmetros e a representatividade foram essenciais. Apesar das confusões iniciais, a Catarina Sour acabou se tornando um marco importante no mundo cervejeiro brasileiro.
Tem uma história interessante que poucas pessoas conhecem. Alessandro tinha um sócio na Way Beer, que havia feito uma promessa a um amigo: se ele tivesse um filho, o sócio seria o padrinho. Quando a criança nasceu, uma menina, o sócio decidiu criar uma cerveja com o nome da filha do amigo, chamada Catarina. A Way Beer então lançou a Catarina Sour, durante um período em que estavam exportando para os Estados Unidos. Pouco antes de seus colegas montarem o próprio negócio, a Way enviou vários pallets dessa cerveja em lata para os Estados Unidos.
As latas eram visualmente atrativas, mas causavam confusão, já que o nome estava escrito de forma diferente, como “Catarina Sour”. Isso gerou uma grande confusão, pois não havia uma relação direta entre o nome da cerveja e o nome da filha do amigo do sócio de Alessandro.
Junqueira reflete sobre as coincidências que permeiam essa história. Ele destaca como é interessante ouvir Nuno compartilhar sua experiência sobre divulgar o tema dentro do meio cervejeiro e ensinar sobre isso. Lembra também dos desafios que enfrentou como cervejeiro caseiro ao abordar outras fábricas para discutir a introdução de bactérias e Brettanomyces em seus processos.
Recorda o investimento e cuidado necessários para garantir a segurança microbiológica ao produzir cervejas sour em larga escala. Ele menciona um projeto com a Bio4, onde precisaram realizar testes rigorosos em toda a linha de produção antes de começar a envasar um grande lote de cervejas para um clube de assinaturas.
Junqueira enfatiza os desafios de convencer outras fábricas a adotar essa prática, mostrando que não é tão complicado quanto parece. Ele elogia a coragem da Heaven Aspire ao arriscar incluir um produto com potencial desconhecido em seus pacotes de cerveja, reconhecendo a importância de educar o público para uma resposta mais informada e madura.
Alessandro destaca como a falta de compreensão inicial gerou equívocos, enfatizando a necessidade de esclarecer e educar os consumidores para evitar mal-entendidos. Alessandro reconhece os riscos envolvidos ao introduzir novos produtos no mercado e elogia a coragem daqueles que assumem esses desafios.
Junqueira reflete sobre os desafios enfrentados na divulgação das cervejas sour. Ele observa que, muitas vezes, quanto mais ele explicava sobre o produto, menos compreensão era gerada no final da conversa. Destaca que, na sua experiência, o mercado gastronômico desempenhou um papel fundamental na aceitação das sours, mais do que o mercado cervejeiro tradicional. Chefs de cozinha e restaurantes de alta gastronomia, acostumados com a diversidade de bebidas, compreendiam melhor as sours e contribuíam significativamente para sua popularização.
Ele também ressalta como esses profissionais ajudaram a estabelecer os produtos de sua cervejaria, incluindo-os em menus degustação e harmonizações, o que gerava recompra e continuidade. Ele reconhece que, ao longo dos anos, o mercado gastronômico foi mais receptivo às sours do que as lojas de garrafas ou tap houses tradicionais. Junqueira vê isso como uma lição aprendida, entendendo a importância de identificar e aproveitar as oportunidades de consumo ideais para cada tipo de produto. Ele destaca a necessidade de cultivar diferentes públicos para criar mais pontos de conexão com a história da cerveja artesanal.
Nuno compartilha sua perspectiva sobre as primeiras iniciativas de cervejas sour no mercado brasileiro. Ele compara esses produtos iniciais a algo extremo e complexo, semelhante ao lançamento do projeto Manipueira em 2013, sugerindo que o público cervejeiro na época não estava totalmente pronto para essa novidade. Ele sugere que a Catarina Sour representou um passo atrás em termos de complexidade, sendo mais suave em acidez e com o atrativo adicional das frutas. Nuno acredita que essa abordagem foi fundamental para preparar o terreno para iniciativas mais extremas, como a Manipueira, e outras apresentadas posteriormente. Ele enfatiza a diversidade dentro do universo das sours, destacando que algumas são extremamente complexas, enquanto outras são mais acessíveis, servindo como porta de entrada para o público menos familiarizado com produtos tão intensos.
Alessandro comenta sobre a evolução do paladar das pessoas dentro do universo cervejeiro. Ele compartilha uma história sobre o primeiro sucesso da sua cervejaria, uma American Pale Ale, que inicialmente foi considerada extremamente amarga pelos consumidores. No entanto, à medida que as pessoas desenvolviam seus paladares, a percepção de amargor mudava. Ele compara essa experiência com a evolução do paladar em relação às cervejas sour, lembrando de sua própria reação inicial desfavorável a esse estilo. Alessandro destaca como o paladar se desenvolve ao longo do tempo e como os gostos mudam, mencionando a crescente apreciação por cervejas mais complexas no mercado brasileiro. Ele expressa entusiasmo pelo projeto Manipueira como uma representação autêntica da cultura brasileira na produção de cervejas, reconhecendo que, apesar dos desafios, há uma luz no fim do túnel para a indústria cervejeira atualmente.
Nuno sugere que, ao apresentar uma sour, é fundamental quebrar essa expectativa e sugerir que o indivíduo pense na bebida de forma diferente, como se estivesse experimentando um vinho ou um coquetel. Ele ressalta que a acidez presente nas sours é algo comum em muitos alimentos e bebidas do cotidiano, e que o desafio está na mudança de percepção sobre o que uma cerveja pode ser. Ao longo dos anos, Nuno aprendeu que preparar o paladar e explicar a experiência sensorial são passos essenciais para garantir que as pessoas apreciem verdadeiramente uma cerveja sour, especialmente em seu primeiro contato com o estilo.
Alessandro menciona a versatilidade da cerveja e a variedade de estilos que podem ser criados a partir desse mesmo produto. Ele faz uma comparação com o vinho, ressaltando que enquanto o vinho é fermentado de uma fruta específica, a cerveja pode ser fermentada a partir de cevada e ainda assim incorporar uma variedade de ingredientes, como frutas, acidez e madeira, inclusive podendo incluir uva. Em relação às sours, Alessandro observa que muitas vezes elas agradam até mesmo aqueles que não são fãs de cerveja. Ele compartilha suas experiências na fábrica, onde já viu pessoas que não gostam de cerveja se surpreenderem positivamente ao experimentarem uma sour. Ele acredita que as sours têm um apelo especial para esse tipo de público, o que demonstra a amplitude de alcance desse estilo cervejeiro.
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