Uma cervejaria ligada à urbanização, à industrialização e até ao futebol da capital paulista

O oitavo episódio da série “Cada cerveja, uma história” mergulha na trajetória da Cervejaria Antarctica — marca que, ao lado da Brahma, deu origem a um dos maiores conglomerados cervejeiros do planeta: a Ambev.

Ludmyla Almeida, Henrique Boaventura e Gabriel Gurian guiam o ouvinte com bom humor, precisão técnica e referências históricas nessa incursão pela trajetória de um dos principais atores do mercado cervejeiro brasileiro.

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Dois caminhos que se cruzam

O cervejeiro

A origem da Antarctica se dá na encruzilhada entre duas trajetórias: a do cervejeiro alemão Louis Bücher, que já vinha de família cervejeira e se instalou na cidade de São Paulo em 1868; e a de um abatedouro de suínos e frigorífico fundado em 1885 no bairro da Água Branca, na capital paulista.

Gambrinus - Louis Bücher

Era 12 de maio de 1870 quando, em sociedade com Guilherme Philipps, Bücher anunciava no jornal Correio Paulistano a abertura da sua fábrica de cerveja na rua 25 de março, que se chamava Gambrinus, batizada em homenagem a uma entidade germânica lendária ligada à cerveja.

Philipps e Bücher, escorados em experiências anteriores no ramo cervejeiro, promoviam-se como “habilitados a afiançar que a sua cerveja corresponderá às maiores exigências do consumo. Favorecida pelo clima excelente e apropriadíssimo desta capital, ela superará em gosto e qualidade as melhores cervejas das fábricas do Rio de Janeiro”.

Em novembro de 1871, a sociedade foi desfeita, mas Bücher seguiu à frente da Gambrinus… Até seu caminho o levar aos empresários no Água Branca.

E o abatedouro

Antarctica Paulista - abatedouroJoaquim de Salles foi um engenheiro brasileiro que, em 1885, numa sociedade com outros cinco nomes, fundou a Antarctica Paulista. Não uma cervejaria, ainda, mas um abatedouro de suínos, frigorífico e fábrica de embutidos.

  • Isso na região que posteriormente daria origem ao chamado “Parque Antarctica”, histórico estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras.
  • É por causa disso que você que é palmeirense tem o porco como mascote! 🐷

Toda essa infraestrutura contava com várias câmaras de resfriamento, para conservação e para a cura das carnes. E com uma fábrica própria de gelo, marco industrial em São Paulo na época! Ou seja, havia autonomia de refrigeração.

Entre altos e baixos, nasce a Cervejaria Antarctica

Porém, em 1887, a organização sofreu um forte tropeço, com a falta de matéria prima, de animais para o abate, devido ao avanço do cultivo do café, que acabou com várias iniciativas pecuaristas na então província de São Paulo. “A lavoura do café estendia a sua rede de avassalamento por toda a região que devia fornecer as indispensáveis porcadas”, escreveu o médico Luiz Pereira Barreto, em 1900.

Diante do impasse, com aquela infraestrutura toda em mãos, entre falência e prejuízo ou uma aposta para continuar de pé, optou-se pelo caminho cervejeiro.

Com a entrada de Louis Bücher, a Antarctica então se converteu em “Fábrica de Gelo e Cervejaria” em 1889 – 1 ano depois do estabelecimento formal da sua concorrente carioca mais notória, a Brahma.

E, naquele ano, já se anunciava a fabricação de lager-bier.

Antarctica - Lager-bier

Lagers no Brasil: técnica, infraestrutura e investimento

A fermentação a frio das leveduras lager exige controle térmico, o que a Antarctica já dominava, tanto do ponto de vista técnico quanto estrutural. As leveduras eram importadas, provavelmente da Alemanha, e reutilizadas entre cervejarias e padarias locais, criando um “repertório” microbiológico ligado aos tradicionais redutos cervejeiros germânicos, mas também adaptativo às condições de produção e intercâmbios no Brasil.

Essa guinada técnica, aliada à robustez estrutural, também dialogava de modo mais amplo com a expansão da industrialização no Brasil, fomentada no início da Primeira República (1889-1930).

Vale dizer ainda que a Antarctica tirou vantagem das ferrovias às quais era próxima – importantes desde o tempo de recebimento de animais para o abatedouro – para distribuir eficazmente a sua produção, para além da cidade de São Paulo.

Como sabemos, o país migrou para o rodoviarismo no século XX, abandonando essas alternativas logísticas cuja valor prático é constantemente evidenciado em várias partes do mundo, há muito tempo.

Antarctica

Reestruturação, dívidas, crescimento e a chegada do século XX

O Decreto Federal de 1890 permitiu a formação de sociedades anônimas no ecossistema empresarial brasileiro, e a Companhia Antarctica Paulista foi oficialmente fundada, com essa roupagem, em 1891. Com dezenas de sócios e milhões de réis de capital, ela pôde importar aparatos especializados de ponta para incrementar ainda mais uma infraestrutura industrial já robusta.

Todavia, os investimentos dariam lugar a dívidas e a uma debacle, diante de um contexto econômico desfavorável. Isso até a entrada, em 1893, da firma Zerrenner, Bülow & Cia., envolvida em importações e exportações, inclusive de café, e credora da Antarctica. Já em 1898, 5 anos depois, os pagamentos de dividendos da empresa sob a nova gestão eram novamente positivos e dignos de nota.

Zerrenner, Bülow & Comp.

Antonio Zerrenner, imigrante alemão naturalizado brasileiro, permaneceria à frente da empresa até 1933, quando faleceu. De modo que, do fim do século XIX ao período chamado “entre-guerras”, a empresa enfrentou poucos apuros. 

Junto da Bavária, a Antarctica capitaneou a consolidação da produção de cervejas em larga escala na cidade de São Paulo. E das cervejarias com foco em produtos lager, no país.

O caso do cartel, ou a Ambev avant la lettre

No comecinho do século XX, uma fusão macro a chamada Federação das Cervejarias – foi ensaiada entre Brahma, Teutônia, Antarctica e a Bavária paulista, pouco menos de 100 anos antes da fundação oficial da Ambev. Planejavam, inclusive, a fixação de preços entre si, o que, na época, ainda não era ilegal.

Contudo, não se chegou a um acordo que viabilizasse o projeto.

Em 1904, as negociações acabaram levando, na verdade, à absorção da Bavária paulista pela Antarctica e a da Teutônia pela Brahma aglutinações que impactariam burocraticamente até mesmo a formação da Ambev, quase um século depois,

Depois disso, Brahma e Antarctica ainda articularam entre si preços para o mercado nacional, uma cooperação que durou sete anos. E mesmo fora de uma federação ampla e poderosa, a hegemonia de ambas duraria o século todo, tendo destaque até hoje.

A Antarctica e o futebol

Antes de ser Allianz Parque, o estádio do Palmeiras era conhecido como Parque Antarctica. Fazia referência, justamente, ao antigo Parque Antarctica, um parque de fato, ligado à cervejaria.

Em 1902, para promover um complexo de convivência e lazer para os funcionários e a comunidade em geral do bairro Água Branca, a Companhia Antarctica Paulista criou o referido parque: um espaço de 300.000 m², com área verde, lago, brinquedos infantis, restaurantes, choperia, salão de festas, espaço de reuniões e áreas para a prática esportiva, incluindo pistas de atletismo, quadras de tênis e um dos primeiros campos de futebol da cidade.

  • Encontramos anúncios daquele ano mencionando já a organização de um campeonato no local, pela Liga Paulista de Foot-ball.

Parque Antarctica - 1905-1910

Quase duas décadas depois, em 1921, a Antarctica vendeu a propriedade do parque para o clube então conhecido como Palestra Itália o futuro Palmeiras , por 500 contos de réis e em troca de um contrato perpétuo de venda dos produtos da empresa pela organização desportiva.

Vê-se, então, que não é de hoje a relação estreitíssima entre futebol e cerveja no Brasil! 🍺

Palestra Italia

Protecionismo, lobby e a guerra contra os pequenos

Mas nem tudo são flores nessa história.

A partir dos anos 1930, Antarctica e Brahma articularam forte lobby junto ao governo federal, em meio a disputas legislativas que avançariam até a década seguinte. De um desenho tributário que até então diferenciava cervejas “artesanais” de “industriais”, no qual as primeiras eram predominantemente ales e as segundas também incluíam lagers muito populares, chegou-se à derradeira Lei n.º 494, de 26 de novembro de 1948.

Ela eliminou as diferentes alíquotas de impostos sobre cervejas de alta e baixa fermentação, consolidando a vantagem competitiva das grandes empresas produtoras de lagers, minando a concorrência em número e diversidade de produtos oferecidos ao mercado. Foi, desse modo, um movimento formador do panorama cervejeiro vigente no país até hoje.

Enquanto as pequenas iam fechando, Brahma e Antarctica continuaram crescendo. Instaurou-se, assim, uma era da hegemonia de poucas: poucas cervejarias, poucas opções de cerveja.

Nesse embalo, em 1934, a Antarctica já tinha filiais em Santos, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Ribeirão Preto. Na segunda metade do século XX, junto com investimentos na escala de produção, viria também a aquisição de várias outras cervejarias, como a Bohemia (1961), a Polar (1972) e a Serramalte (1980).

Ribeirão Preto: segunda casa da Antarctica

Falando em Ribeirão Preto, a primeira filial da Antarctica fora da capital paulista foi aberta em 1911 naquela cidade do interior, que já contava com representantes de venda da empresa desde 1891.

Tinha uma cena de consumo interessante, com cervejarias de imigrantes italianos, como a Livi & Bertoldi, além do capital financeiro do café na região, o que a tornou um destino viável para a empresa. Atribui-se como uma das razões para essa abertura também a influência do citado Luiz Pereira Barreto, um grande lobista de Ribeirão como polo cafeeiro, com trânsito junto à cúpula majoritária da Antarctica.

De modo que o dinheiro e a estruturação já existentes pavimentaram o caminho para que a cidade também se tornasse um polo cervejeiro muito relevante. Não só terra dos barões do café, mas um ponto com potencial industrial.

Antarctica - Ribeirão Preto

Questão interessante na trajetória da Antarctica em Ribeirão foi a concorrência e simbiose com a Cervejaria Paulista, fundada em 1913, até a compra desta pela primeira em 1973.

A emblemática Choperia Pinguim também surgiu na ascensão cervejeira ribeirão-pretana, tendo sido fundada em 1936, permanecendo firme e forte até hoje!

Choperia Pinguim

Contudo, apesar dos sucessos e da sólida reputação cervejeira de Ribeirão, hoje considerada a “Capital do Chopp”, a unidade da Antarctica na cidade foi desativada em 2003.

Um portfólio além da cerveja

Sabemos, e isso se vê até hoje, que a Antarctica não se limitou à cerveja. Ainda que sua oferta de rótulos cervejeiros fosse, ao longo do século XX, consideravelmente menor que a contemporânea Brahma, a paulista ofereceu opções além.

Dos refrigerantes às águas gasosas, os rótulos foram e continuam muito influentes no mercado de bebidas não-alcoólicas.

Entre as cervejas, hoje encontramos:

  • Antarctica BOA
  • Antarctica Original (rótulo surgido na Cervejaria Adriática, de Ponta Grossa-PR, comprada pela Antarctica em 1943)
  • Subzero (lançada em 2009)
  • Subzero Silver (lançada em 2022)

Entre as de outrora, alguns exemplos:

  • Pilsener
  • Pilsen-Extra
    • Pilsen-Extra Cristal (1991)
  • Malzbier (1935)
  • Tip Top Bock (1907)
    • E outra tentativa com Bock em 1994.
  • München-Extra
  • Excelente (nome do rótulo)
  • Esperança (idem)
  • Kronenbier, a primeira cerveja sem álcool feita em escala industrial no Brasil (1991).

Dos refrigerantes, muitas invenções do passado ainda fazem sucesso:

  • Club Soda (1911)
  • Soda Limonada (1912)
  • Água Tônica (1914)
  • Guaraná Antarctica (1921)
    • Lançamento do Guaraná Caçula, em 1950, em embalagens de 185 ml.
  • Pop de Laranja (1977)
  • Lançamento de todas as linhas de refrigerante em embalagens lata, 1981.

Uma curiosidade: a Antarctica também teve, por mais de 80 anos, de 1913 a 1996, seu próprio braço de bebidas destiladas e fortificadas, com um nome ótimo: Dubar Indústria e Comércio de Bebidas Ltda. No portfólio, contava com gim, conhaque, licores, vermutes etc.

Branding e identidade visual: a força dos pinguins

A faixa azul, que ainda figura no rótulo “retrô” da Original, era marca de autenticidade. Dali, a cor se tornou assinatura visual, bastante distinta das demais lagers de massa brasileiras hoje em dia.

os pinguins remontam a 1935, tendo se tornado o maior símbolo da marca. Contudo, a causa de sua inclusão é até hoje pouco clara, salvo pela associação evidente entre a Antártida, o continente, e seus habitantes mais emblemáticos. E, claro, o frio, o gelo, sempre associado à cerveja lager

A nós do Surra, restou rir um pouco com o design do rótulo, que sempre posiciona os pinguins juntos, mas nunca em contato, como “amantes tristes e platônicos”.

Faixa Azul - Antarctica

O legado de uma das maiores cervejarias brasileiras

A história da Cervejaria Antarctica nos permite caminhar por momentos importantes da história do Brasil e até da do mundo. Ela toca na urbanização e industrialização de São Paulo, no desenvolvimento de Ribeirão Preto, no clássico futebol paulista e, claro, no monopólio das lagers.

Hoje, o nome da Antarctica ainda surge como pilar do mercado cervejeiro brasileiro, cuja trajetória espelha o desenvolvimento do setor no país ao longo do século XX, com muitos impactos no nosso presente. Conhecendo-a, valorizamos seus contributos e também nos municiamos para, quem sabe, promover um ecossistema mais diverso e equânime, da justiça tributária e desembargo burocrático até a experiência deleitosa proporcionada pelo serviço que acompanha o copo. 🍻

Gabriel Gurian

Historiador, com Mestrado e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), meus estudos são pautados por bebidas e bebedores na história do Brasil, em diferentes períodos. Atualmente integro o projeto Comer História, desenvolvo pesquisa pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), com foco no nascimento da cultura cervejeira brasileira no século XIX, e colaboro com o Surra de Lúpulo.

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