No episódio dessa semana do Surra de Lúpulo, vamos falar sobre a turbulência que o mercado cervejeiro independente tem vivido, explorando as consequências da pandemia da covid, e refletindo sobre o passado. Essa turbulência surgiu antes do que muitos imaginam.

 

✨ O Surra de Lúpulo conta com o apoio dos nossos queridos Mecenas Empresariais: ✨ Cervejaria UçáViveiro Van de Bergen e Prussia Bier.

 

Ouça o episódio na íntegra:

 

Turbulência no mercado cervejeiro

 

Estamos em 2024, 4 anos depois do começo do fim, calma porque vamos explicar.

imagem de ilustração do coronavirus
Foto de cottonbro studio no Pexels

Em março de 2020 estávamos começando a experimentar o problema que a pandemia de covid significaria. Inocentemente, muitos de nós, achávamos que ela ia acabar em 15 dias. 

Os 15 dias viraram 3 meses de um super lockdown. De casa, nós trabalhamos, nos exercitamos, bebemos e até confraternizamos a distância com os amigos. Casamentos começaram e outros acabaram. Empresas e funcionários tiveram que se adaptar ao sistema remoto da noite para o dia. E o mundo temeu nunca mais conviver de forma presencial.

Claro que as cervejarias independentes sofreram um grande baque. Produziam cerveja, mas para vender onde? As lojas estavam fechadas, os bares estavam fechados, falindo ou descobrindo como sobreviver também. Então, como seguir assim? Muitas cervejarias abriram seus e-commerces para vender ao consumidor final, aplicativos de entrega e toda uma gama de soluções e tentativas foram colocadas à prova.

Na verdade, isso não foi um problema específico das cervejarias independentes. Muitos outros negócios passaram pelas mesmas aflições e não há (ou houve) apenas um caminho, tanto para quem fechou, quanto para quem sobreviveu. Mas fato é: TODO mundo sofreu.

A pandemia não foi rápida. Ela foi algoz e sádica. Ela durou. Arrefeceu em alguns momentos, voltou com força total esgotando as forças remanescentes, mas passou. Dizemos que passou entre aspas, porque ficou claro que a covid vai conviver conosco e que a solução é a vacinação anual em massa. 

Mas pera! O papo aqui não é sobre covid. É sobre cervejarias, 4 anos depois, fechando as suas portas. Desistindo dos seus sonhos. Bares, brewpubs e pontos de venda encerrando os seus negócios. Mas nem tudo é culpa da pandemia.

Vamos dar alguns muitos passos atrás e voltar quando Brahma e Antártica ainda brigavam pelo mesmo mercado. Apenas em primeiro de julho de 1999 aconteceu a criação da AmBev e, com ela, foi anunciada a fusão da Companhia Antarctica Paulista e da Companhia Cervejaria Brahma

A AmBev surge como a terceira maior cervejaria do mundo e quinta maior produtora de bebidas no cenário internacional. Porém, só foi em 30 de março de 2000 que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a criação da companhia.

 

No nosso papo com Eduardo Marcuso, no episódio 163, ele nos contou que a disputa entre as grandes e as pequenas cervejarias é antiga:

 

“E aí começa a disputa das pequenas cervejarias com as grandes cervejarias, e o estado regula o modelo. Ele também regula interesses e conflitos das pequenas e as grandes. Então, as pequenas eram as de alta fermentação e as grandes de baixa fermentação.

E naquela época, havia uma diferença de imposto. Isso é algo que as cervejarias artesanais lutam até hoje, e é difícil. A gente está lá na Câmara Setorial debatendo com as grandes. As grandes não têm grandes problemas nessa diferenciação, pois elas lutam de cima. Os debaixo precisam de ajuda porque são empreendedores por natureza. O cara está lá desbravando. É complicado empreender no Brasil.

E aí você tinha diferença entre as Ales e as Lagers, por quê? Por causa do volume de produção. E as associações desses produtores foram se organizando, e, por incrível que pareça, as grandes cervejarias conseguiram se organizar em 1940, no SINDICERV, que existe até hoje. E em 1948, a diferença na tributação acabou. Então, a cerveja é tributada igual. E se eu sou tributado igual aos grandes, não tem como competir.

Em 1940, você tinha 200 cervejarias no Brasil. Você só voltou a ter 200 cervejarias no Brasil em 2010. Porque depois disso, tivemos uma queda grande no número de cervejarias, com a expansão vertiginosa da Brahma e da Antártica. E aí tem essa concentração do mercado e a diminuição diminuição dessa diversidade que a cerveja artesanal ou a cerveja de baixa fermentação trazia na época.“.

 

Acho que vale repetir, porque olha só, em 1940, havia 200 cervejarias no Brasil. Esse número foi paulatinamente despencando com o advento dos grandes conglomerados e, consequentemente, com o fechamento das pequenas fábricas. Apenas em 2010, com o ressurgimento da cena artesanal no Brasil, voltamos a ter 200 cervejarias. Foram 70 anos de longa dominação e sem nenhum tipo de concorrência – o que mesmo hoje, nem dá para chamar de concorrência.

É crucial, a partir desse ponto do nosso papo, dar a devida importância ao movimento dos Cervejeiros Caseiros.

Eles, no começo dos anos 2000, abraçaram a produção artesanal da bebida. Este movimento está ligado a uma onda mundial de Slowfood, que busca maior qualidade e caracterização de produtos alimentícios, e que tenha em sua produção a diminuição do processo de padronização e artificialização de comida e bebida. Esse movimento foi um dos responsáveis por  levar a cerveja de volta à condição de alimento, para que as pessoas parassem de beber em quantidade e passassem a beber com qualidade.

 

Imagem de seriouseats.com

 

A gente trouxe aqui o depoimento do Henrique Boaventura, do Brassagem Forte, sobre a importância do cervejeiro caseiro para a cena cervejeira:

 

“Tem uma frase que resume perfeitamente a relação do cervejeiro caseiro com o movimento de cerveja, que é: o cervejeiro caseiro é o motor da cerveja artesanal.

Isso faz total sentido olhando para o passado. Muitos cervejeiros caseiros se tornaram profissionais; era meio que um pré-requisito para ter uma cervejaria, você tinha que ter esquentado a barriga no fogão fazendo cerveja em casa. Temos alguns exemplos disso, principalmente vou mencionar aqui no sul, mas temos Brasil afora, como Estevão Chittó, da Suricato, Cristiano Winck, da Maniba, Leo, da Seasons.

E não era raro em encontros de acervas encontrar essas figuras participando e trocando ideias com outras pessoas ali presentes. Isso gerava uma cena forte, um senso de comunidade e acabava também impactando nos negócios das cervejarias. A identificação com cervejeiros profissionais atraía as pessoas, de certa forma, para as cervejarias, gerando consumo, ampliando negócios, etc.

Eu, estando inserido nessa cena desde 2013, vi isso acontecendo. Principalmente, via muito esse apoio acontecendo por parte das cervejarias que vieram da cena caseira, voltando a apoiar quem estava começando, quem ainda participava da cena caseira. Então, ajudavam a disponibilizar insumos, dias de brassagem coletiva, além de eventos cervejeiros a um custo mais barato.”

 

Ainda sobre esse tema, no episódio 186, nós falamos com Leandro Oliveira sobre Cervejeiro Caseiro ser ou não ser, eis a questão. Nós debatemos amplamente a importância desse grupo e recebemos um áudio do nosso mecenas Douglas Spech, que fala que o cervejeiro caseiro é meio que o fio condutor da cena artesanal, pois ele é o responsável por apresentar aos seus amigos e familiares novos sabores e aromas. Vamos ouvir:

 

“Acho que há três pontos principais onde o cervejeiro tem relevância no mercado de cerveja. Primeiro, como consumidor, ele está sempre aberto a experimentar coisas novas, consumindo cervejas extremas, lançamentos, estilos novos, para conhecer melhor as cervejas que ele vai fazer em casa.

Outro ponto importante, eu acredito, é como disseminador da cultura cervejeira, apresentando a cerveja artesanal para sua comunidade, amigos e família, sendo muitas vezes o primeiro contato das pessoas com esse tipo de cerveja em eventos, aniversários, ou simplesmente ao compartilhar sua produção. Ele acaba contribuindo para difundir e ampliar o mercado cervejeiro.

E também como renovação do mercado. O surgimento de novas cervejarias normalmente passa por um cervejeiro artesanal que sonha em vender sua cerveja, ganhar dinheiro com o que ama fazer e acaba renovando o setor com empresas que abrem por paixão pela cerveja, não apenas visando lucro, mas para realizar sua paixão e ainda sustentar-se com ela.”

 

homebrew

 

Mas nem tudo são flores. Esse hobby também sofreu os seus percalços. Agora Leandro Oliveira, do Canal Cerveja Fácil, fala das suas percepções sobre como ele enxerga o momento da cena de produção caseira no Brasil:

 

Desde que comecei o canal, a tendência tem sido de um crescimento muito grande. Mas aí veio a pandemia, né? Você poderia pensar que a pandemia arrasou tudo. Mas não, na verdade a cerveja caseira teve um boom absurdo. Foi um crescimento muito grande. Porque as pessoas ficaram em casa, tinham tempo disponível em casa. Só que isso também meio que adiantou uma demanda. Meio que acelerou de uma forma descomunal as pessoas querendo fazer cerveja.

Só que a pandemia literalmente acabou e perdeu-se toda essa força. Muita gente parou de fazer cerveja, muita gente que começou na pandemia, quando pôde respirar um pouquinho e sair lá fora, já não via muito sentido em fazer cerveja em casa, queria fazer outras atividades. E ultimamente, nos últimos um ano e meio, o crescimento está bem baixo.

Muita gente parou de fazer, muita gente vendendo equipamento. Esta é a parte mais triste, muitos abriram e agora estão fechando as portas. Ah, não é porque eles não souberam administrar bem? Não, é porque está entrando menos gente. E os que estão comprando menos, fazendo menos cerveja. Antes faziam uma vez por mês, agora fazem a cada três meses, uma vez a cada semestre, fazem apenas para ocasiões especiais.”

 

As microcervejarias modernas surgiram a partir desse movimento dos Cervejeiros Caseiros Artesanais, que começou no Brasil, aproximadamente, no início dos anos 2000. Deste ponto em diante, nota-se o aumento do número de fábricas, cursos e cervejas com foco na cerveja especial. Usamos como referência o material da Revista Espacios, leia clicando aqui.

Os cervejeiros caseiros foram descobrir como fazer cerveja, aprendendo na unha o que estava dentro do copo, como esses ingredientes interagiam entre si e no que eles se transformavam. Muitos desses aventureiros da cerveja artesanal viraram cervejeiros profissionais e abriram suas próprias cervejarias.

 

Aqui temos a experiência da cervejeira multi premiada Ingrid Mattos, da Cervejaria Masterpice, do Rio de Janeiro, sobre abandonar as panelinhas em casa para comandar os tanques de uma cervejaria profissional:

 

O que fez diferença entre eu sair da minha panelinha de 80 litros, eu já comecei um pouco audaciosa, para vir para a indústria foi minha formação, né? Eu sou engenheira química e sempre fui apaixonada por processo, desenvolvimento de produto e operações em si, né? E gostava de cerveja também, né? Gostava não, gosto demais, amo [cerveja].

Eu queria que isso fosse real, oficial, minha profissão mesmo. Aí comecei para poder fazer uma mini escala em casa e vi que queria levar aquilo a sério, mas não conseguiria se não tivesse passado pela panelinha e entendido que, de fato, para trabalhar com cerveja é preciso ter muito conhecimento, muita expertise e, obviamente, experiência.

E a gente começa na panelinha, em casa mesmo, porque produzir, arrumar, manter, envasar e distribuir com cautela, a gente já vai aprendendo em pequena escala para trazer para a indústria. Essa é um pouquinho da minha história, saindo das panelas e vindo hoje comandar duas fábricas aqui no Rio de Janeiro.”

 

Os mais atentos já perceberam, em muitos depoimentos, que a cerveja move paixões. E motivados por essa cultura inebriante, em tantos sentidos, temos vários exemplos de mulheres e homens que abandonaram suas profissões originais para empreender com cervejaVamos ouvir agora o Estevão Chittó, da Suricato Ales, que fez exatamente esse movimento:

 

“A minha transição de cervejeiro caseiro para dono de cervejaria aconteceu num momento bem diferente do mercado atual. Foi em 2015 e foi um momento ímpar na minha vida. No meio de 2015, já estava rolando planejamento estratégico para abrir a cervejaria, plano de negócio e tal. E aí ganhamos a premiação de melhor cerveja caseira, melhor cervejeiro do país no Nacional das Acervas. Isso meio que alavancou a abertura da cervejaria, porque a gente teve uma proposta de uma cervejaria, na época a Cervejaria Heilig, para abrir em parceria. E isso, com poucos meses de trabalho, já em março de 2016, a gente acabou conquistando o segundo lugar entre o prêmio de segunda melhor cervejaria do país no Campeonato Brasileiro de Cervejas em Carém. Oito meses, nove meses.

Foi algo muito explosivo, assim. E isso meio que marcou, para o bem e para o mal, o início da cervejaria. Esse movimento inicial da cervejaria. E junto com esse momento de mercado lá em 2015, pintou uma cena que era tudo flores, né? Que vamos fazer muitas sours, e vamos fazer muitas cervejas diferentes, e só fazer o que a gente gosta, e não ter que trabalhar mais. Que é uma realidade que hoje, com 8 anos, quase 9 anos de mercado aí, já deu para entender e aprender que não é bem assim.

Então, foi um movimento que foi natural, foi fácil de fazer, teve uma parcela importante de planejamento, mas hoje, olhando para trás, é óbvio que teria feito muita coisa diferente, mas é uma decisão que mudou a minha vida, mudou a minha carreira e vai ter um impacto para sempre na minha vida.

Acho que quem está começando agora tem desafios diferentes dos desafios que a gente enfrentou lá atrás, num mercado completamente diferente. Mas também tem muita gente que já trilhou esse caminho e dá para aprender muito com os erros dos outros, né? Não é mais o oceano azul. Tem muita gente para se espelhar para o bem e para o mal”.

 

Cervejaria Devassa

Entre os anos 90 e o início dos anos 2000, a cena começa a mudar timidamente novamente com a fundação de diversas novas microcervejarias pelo país. Para citar apenas alguns exemplos, temos a Dado Bier, na cidade de Porto Alegre em 1995, Cervejaria Colorado, em Ribeirão Preto (SP), em 1996. Temos também KRUG Bier fundada em 1997 e a Cervejaria Wälls, em novembro de 1999, ambas em BH, além da Cervejaria Conti, em 2001 na cidade de Cândido Mota no interior de SP, no mesmo ano a Cervejaria Devassa, no Rio de Janeiro, a Cervejaria Eisenbahn em 2002 na cidade Blumenau (SC), e outras tantas pelo país.

Algumas dessas foram compradas pela AMBEV, outras pela Heineken. Certamente tantas outras fecharam e algumas seguem de pé, produzindo cervejas com modelos de negócios absolutamente diferentes.

Na esteira da chegada desses novos sabores sendo produzidos no Brasil, a situação econômica era melhor e as importações tiveram um boom. Bebíamos cervejas belgas, alemãs e tchecas. Os preços eram mais palatáveis e elas chegavam aqui aos borbotões. Nessa época, pudemos provar as cervejas que eram exemplos perfeitos dos estilos. Foi também a vez das importadoras, que lotaram as prateleiras das lojas cervejeiras pelo país.

Neste mesmo caminho de prosperidade, vimos diversos clubes cervejeiros começarem suas operações, buscando trilhar o mesmo caminho do vinho, que já entregava em casa pequenas seleções para seus assinantes. Os clubes cervejeiros seguiram o mesmo modelo de negócio do vinho, mas a grande maioria que abriu neste começo, não existe mais. E os que estão de pé, têm formatos de negócios completamente diferentes do que conhecíamos.

 

No episódio 185 tratamos muito desse assunto e recebemos depoimentos importantes falando sobre esse mercado. Nos chamou atenção a fala do Luis Celso Júnio, do Bar do Celso, que hoje é também um clube de assinatura. Vamos ouvir:

 

Há mais de três anos, montei um clube de cerveja chamado Clube Bar do Celso e temos trabalhado com essa modalidade de fornecimento de cervejas, vamos chamar assim, que é recorrente, que é a ideia do clube de assinatura, como vendas. Há muita dificuldade em trabalhar hoje com um clube de assinatura.

Acho que vocês sabem, os clubes não são novos. Houve um boom de clubes de assinatura e depois desse tempo eles se reduziram e sobraram alguns poucos clubes. Isso porque estamos vendo agora uma nova fase, né? Estamos vendo um renascimento dos clubes de assinatura, muito mais fragmentados, não grandes clubes, mas pequenas cervejarias. Então hoje temos muito mais concorrentes no mercado, sendo esses concorrentes os próprios fornecedores de cerveja antigamente, né?

Então as cervejarias estão abrindo seus clubes, etc. E essa é uma das questões bastante cruciais dentro do mercado de clube de assinatura. A concorrência é maior e hoje você concorre com os fornecedores“.

 

Alguns desses profissionais se juntaram e criaram seus próprios cursos, escolas e institutos. Nasce aí uma janela de oportunidade. Ensinar a degustar cervejas pelo olhar profissional. Bebedores apaixonados pelo que chegava das importadoras correram atrás dos cursos de sommelier para descobrir o que existia dentro dos seus copos.

Depois de muita pesquisa, ficou claro que mais uma escola clama que foi a responsável pela primeira turma do curso de sommelier no país. Achamos uma matéria do G1, datada de 26 de abril de 2009, que fala que a primeira turma aconteceria em São Paulo, no segundo semestre daquele ano, e que seria capitaneada por Silene Sauri. Engenheira de alimentos, Beer Sommelier pela Damas Academy, na Alemanha, e Mestre Cervejeira na Espanha. Essa turma só aconteceu de fato lá entre outubro e novembro de 2010. 

 

Foto cedida pela Selene. Reconheça grandes profissionais que atuaram e ainda estão atuando no mercado até hoje.

 

Mas existem outras fontes que creditam que a primeira turma do curso de sommelier de cervejas no Brasil também se formou em 2010, porém não sob a tutela da Cilene e sim por meio de uma parceria entre o Instituto de Cerveja Brasil e a Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), em São Paulo, com aulas ministradas por Kathia Zanatta e Alfredo Ferreira. Vale ressaltar que o ICB só foi criado algum tempo depois dessa primeira parceria com a ABS.

 

Vamos ouvir agora o áudio de Cilene Saorin falando um pouco sobre como foi essa primeira turma de sommelier no Brasil:

 

“Sou Cilene Saurin e trabalho como diretora de educação da Dürmens nas regiões da Península Ibérica e América Latina. Para quem desconhece, Dürmens é uma escola alemã centenária que desenvolveu e lançou de forma pioneira no mundo a capacitação profissional de sommelier de cervejas em 2004.

Em 2010, depois de dois longos anos de negociações e preparações, conduzi o primeiro curso de formação profissional de sommelier de cervejas no Brasil. Esse curso foi apresentado na cidade de São Paulo, numa imersão de duas semanas consecutivas, tal como na Alemanha, com uma turma eclética e multidisciplinar, composta por 38 pessoas. Havia mestres cervejeiros, proprietários de cervejarias e importadoras de cervejas, jornalistas, blogueiros e profissionais da gastronomia. Nessa turma, muitas pessoas conhecidas e atuantes nos negócios da cerveja até hoje estiveram presentes.

Foi um grande desafio, especialmente para garantir a amplitude temática do curso em meio às diversas discussões acaloradas que tivemos. Guardo muitas histórias e memórias dessa experiência. Esse curso foi o começo de uma jornada de 15 anos, que se estendeu por 7 países, com mais de 150 edições em português e espanhol, formando mais de 4 mil sommeliers.

Este projeto de educação é muito importante para mim, sobretudo porque gerou impacto e transformação na vida profissional de muitas pessoas. Fico muito feliz em perceber que isso se concretizou de fato. Os sommeliers de cervejas têm contribuído significativamente na comunicação e no serviço de cervejas no Brasil.

De lá para cá, muita coisa mudou e mudou para melhor nesse sentido. O mercado cresceu e a quantidade de profissionais também aumentou. No entanto, ainda acredito que temos muito a aprender sobre o senso de comunidade. Agradeço a oportunidade e, desse ponto de vista, talvez o clima fosse mais amigável antes, embora as hostilidades também fossem mais veladas na época. Mesmo assim, mantenho o meu otimismo”.

 

Depois dessa turma, o curso de sommelier ganhou destaque no Brasil. Muitas outras turmas vieram na sequência, em várias capitais do país. Infelizmente, o curso não era acessível para todos, mesmo com a economia um pouco melhor, o valor ainda era proibitivo. No entanto, esse mercado exclusivista e elitista se consolidou no Brasil com força total e ainda adotou o slogan “beba menos, beba melhor”. A cerveja especial nasceu com um ar de superioridade e foi destinada a poucos paladares. Talvez por isso, ainda hoje, ela sofra com a falta de penetração no grande público.

Pronto, cenário montado: economia em alta, curiosos sedentos e apaixonados inundam cursos, começam a produzir cervejas em casa, tornam-se empreendedores cervejeiros e, tardiamente, o Brasil entra na onda das cervejas especiais.

Quando falamos “tardiamente”, é porque nos Estados Unidos tudo começou a mudar a partir de 1978, quando o então presidente Jimmy Carter assinou a lei H.R. 1337, um documento que autorizava a produção de cerveja em casa. Na prática, ele revogou legislação que datava da era da Lei Seca, meio século antes, o que impulsionou o mercado das cervejas caseiras e artesanais e, com isso, a inovação do setor.

Entre 1985 e 1997, o número de cervejarias disparou por lá. Com o passar dos anos, cada vez mais produtores de cerveja caseira profissionalizaram-se e criaram empresas familiares de cerveja artesanal. Ainda hoje, uma grande parte dos profissionais das microcervejarias norte-americanas começou pela produção caseira.

A escola cervejeira americana é a filha mais nova, mas o americano chega com o pé na porta em tudo que coloca a mão. Eles criaram em 1985 o BJCP (Beer Judge Certification Program) e em 2005 o BA (Brewers Association). Essas entidades catalogaram e padronizaram os estilos como conhecemos hoje. A Brewers Association vai além de um guia de estilos, é uma associação com o objetivo de promover e proteger pequenos e independentes cervejeiros americanos, suas cervejas artesanais e a comunidade de entusiastas da cerveja.

 

BJCP Certified Beer Judge

 

Agora, vamos ouvir Thomaz Pupo, de São Paulo, que é Gran Master 1 no nível BJCP e diretor de exames deste guia, falando sobre o que é o BJCP, sua finalidade e função para o mercado cervejeiro independente:

 

Qual a importância do BJCP para o mercado? E aqui eu vou destacar que, para o mercado, é nula. O BJCP não tem poder de decisão. O BJCP foi criado com foco no cervejeiro caseiro. Então, quando falamos do mercado, o BJCP não está ditando regras para ninguém. O BJCP visa incentivar o conhecimento, compreensão e apreciação dos estilos de cerveja, hidromel e sidra.

Ele está presente para promover, reconhecer e avançar a avaliação sensorial de cerveja, hidromel e sidra. Além disso, busca aprimorar a habilidade de comunicação pessoal dos participantes do programa. Por último, visa desenvolver uma ferramenta padronizada, métodos e processos para realizar avaliações justas e honestas em concursos.”

 

Os americanos adaptaram vários estilos, renomeando-os como “american” isso e “american” aquilo. Tornaram-se os maiores produtores e exportadores de lúpulo do mundo. O mercado interno de cerveja independente sempre foi muito dinâmico e, em seu auge, entre os anos de 2010 e 2020, conquistou mais de 15% da fatia de consumidores.

Claro, as grandes empresas também se movimentaram para se proteger, comprando e fundindo marcas. É tudo igual em todos os lugares, mas em épocas diferentes.

Pela primeira vez em muitos anos, o mercado americano de cervejas independentes enfrenta grandes dificuldades. Apesar de percebermos essas dificuldades hoje, de acordo com Christopher Shepard, editor sênior do site Craft Brew News, Tony Magee, fundador da Lagunitas, já previa o que estava por vir.

Vamos ouvir Christopher no Brewbound Podcast, no primeiro episódio deste ano, chamado “What Even Happened in 2023?” (O que aconteceu em 2023?, em tradução livre):

 

“Seria baseado nessa ideia do Tony Magee, da Lagunitas, que não está mais na Lagunitas, e não está há muito tempo. Foi vendida anos atrás. Mas ele disse, logo antes da venda. Foi uma das muitas pessoas – há cerca de 8 anos – que falaram que precisaria haver uma espécie de retomada. Como se já tivéssemos passado por esse período de crescimento. E esse crescimento vai desaparecer porque é o que acontece, exatamente como aconteceu no final dos anos 90.

Haverá um período de retomada de cerca de 7 anos, e então cerveja artesanal vai alcançar uma nova onda de crescimento. Eu penso em termos de cronograma, que a pandemia meio que embaralhou quanto tempo dura esse período de retomada e molda a forma que esse período assume, obviamente. Mas isso ainda parece correto para mim. A questão sobre o Tony é que ele foi incrivelmente preciso e previu muitas coisas que funcionaram muito bem para Lagunitas.”

 

Dito isso, o mercado dos Estados Unidos, que historicamente sempre foi a meca da cerveja artesanal, no último ano apresentou retração.

De acordo com o material divulgado pela Brewers Association, chamado Year in Beer 2023, o mercado americano está maduro e competitivo, mas a desaceleração do crescimento e o aumento da concorrência foram um forte golpe para as cervejarias artesanais no último ano.

2023 foi um ano desafiador para muitas cervejarias pequenas e independentes. Todos os sinais apontam para uma queda na produção nestes negócios, o que é uma novidade, excluindo o ano de  2020 por motivos óbvios.

As principais causas seriam a diminuição na demanda, a concorrência de todas as outras bebidas alcoólicas e um ambiente muito dividido marcado pelo declínio das vendas de chope e pela redução do espaço nas prateleiras para as cervejas artesanais.

Indo para o outro lado do mundo, na Austrália a situação das cervejas independentes também não está fácil e os motivos seriam: pandemia, pressão tributária e a mão pesada do monopólio das grandes empresas.

Não é privilégio das cervejarias independentes os males causados pelo período da pandemia, todas as indústrias estão meio que passando pelas mesmas coisas, tais como: escassez de mão de obra, aumento dos custos de transporte, ingredientes, frete, aumento da inflação e das taxas de juros, tornando mais difícil para os consumidores se prepararem para um produto artesanal premium, como a cerveja artesanal.

Mas há outra camada de desafios exclusivos da indústria cervejeira, especificamente na Austrália, como ressalta a CEO da Independent Brewers Association (IBA) Kylie Lethbridge.

 

Somos a terceira nação mais tributária na fabricação de cerveja do mundo. Nosso imposto aumenta duas vezes por ano, não apenas uma, mas duas vezes (quando o imposto especial de consumo de álcool aumenta de acordo com a inflação). É um campo de jogo muito desigual em relação a como o álcool da Austrália é tributado.”

 

Se todos esses desafios não bastassem, ainda existe a pesada mão da concorrência das grandes corporações que fazem contratos de exclusividade com bares e restaurantes e impossibilita as cervejas independentes de acessarem esses estabelecimentos, oferecendo todo tipo de vantagens aos seus donos. Infelizmente, essa realidade dos monopólios não é diferente por aqui

Voltando ao mercado brasileiro, o cenário também é um tanto desanimador para quem acompanha de perto a cena independente. Todos os meses ouvimos falar de uma loja, bar, cervejaria ou qualquer outro tipo de empreendimento relacionado à cerveja fechando as portas.

Nosso país passa, neste exato momento, sobre a discussão da reforma tributária, que pode impactar enormemente na cerveja como um todo. Existe um trabalho consistente sendo feito pela ABRACERVA, através do seu presidente Giba Tarantino, de mobilizar e demonstrar que é preciso tratar as cervejarias independentes de outra forma.

 

Qual é a proposta que a Abracerva junto com o SINDICERV está tentando emplacar nas discussões sobre a reforma tributária?

 

Giba Tarantino

“A Abracerva, juntamente com o SINDICERV, mas também eu tenho que citar que a gente faz um trabalho também junto com o Cerv Brasil, junto com o Febracerva. Eu diria que é um movimento talvez único que uniu realmente todas as associações, todas as cervejarias de todos os tamanhos, das três gigantes até os Brewpubs. Pois o momento é histórico, uma vez que a reforma tributária, a última foi, sei lá, 40, 50 anos, e a próxima também vai levar décadas para acontecer.

Quais são os pleitos? O que nós conseguimos alinhar dentro da Câmara? Primeiro, que todas as cervejarias, todas as empresas de bebidas, onde aí inclui vinho e destilado, que estão dentro do Simples, estão fora da reforma tributária. Então, esse é o primeiro pleito. Segundo pleito, muito importante também, que o imposto seletivo seja cobrado com base no teor alcoólico.

Hoje em dia, a cerveja já tem uma tributação de impostos federais diferente do vinho, diferente da cachaça e diferente dos destilados. E isso também é uma norma mundial. Na Inglaterra, na Suécia e nos Estados Unidos, as cervejas são tributadas por teor alcoólico. Ou seja, a gente não está inventando nada, a gente quer que essa referência mundial seja mantida aqui.

A gente também tem um olhar para as empresas que estão fora do Simples e que estão no Lucro Presumido e no Lucro Real, onde a gente tem uma proposta de criar faixas por volume de produção. E nós também temos uma campanha aí, que já vem há bastante tempo, o aumento do teto do Simples. E o impacto para o setor, se por acaso a gente não tiver êxito nesses nossos pleitos, o que vai acontecer é que a situação pode ficar muito pior do que está hoje.

Hoje em dia não está fácil, a carga tributária é um absurdo, o Brasil tem uma das piores cargas tributárias do mundo, a gente precisa se unir para lutar. Eu sou otimista, acho que a gente já está fazendo um trabalho bom como segmento, o segmento está unido e a gente vai lutar para que tudo isso aconteça de uma maneira muito organizada. Que a gente consiga novamente os pleitos”.

 

Apesar desses dados, quando olhamos as informações do Anuário da Cerveja elaborado pelo MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária), anualmente o setor cervejeiro bate recordes de fábricas, produção, exportação, recolhimento de impostos etc.

Divulgado em julho de 2023, o Anuário da Cerveja de 2022 demonstrou a resiliência do setor ao trazer um crescimento de 11,6% no número de cervejarias registradas no Brasil, chegando às 1.729, um salto positivo de 180 estabelecimentos na comparação com 2021.

Nosso questionamento aqui é que se a referência de crescer o número de cervejarias é a melhor para entendermos se o mercado está aquecido e saudável, ou não.

Ao alcançarmos o final dessa jornada importante, porém dolorosa, de revisitar a história da cerveja nacional e tentar entender como chegamos aqui, vamos usar como recurso final as palavras do jornalista e observador do mercado, Bob Fonseca. Ele participa conosco na análise da nossa pesquisa anual de consumo.

O mercado cervejeiro artesanal no Brasil vive dentro de um filme de terror. Esta é a definição mais precisa que encontramos para o período de 2020 a 2023, motivos mais do que conhecidos por todos nós, mas para citar apenas um, a pandemia. (olha ela aqui novamente).

Ela passou, mas  muita gente continua a ficar pelo caminho. Outros tantos sobreviveram aos últimos quatro anos, mas não passaram ilesos. Vários cervejeiros acreditaram na volta dos negócios da forma como eram antes de 2020, mas não foi bem isso que aconteceu.

 

Não temos todas as respostas, talvez nem tenhamos as respostas certas, mas se for para darmos algumas sugestões seriam:

 

  • Não menospreze os sinais óbvios – há fortes sinais de que o caminho é buscar estilos mais clássicos e básicos e de valor mais acessível. Preço é um fator muito importante na decisão de uma grande parcela de pessoas.

 

  • Não deixe nenhum participante do mercado de fora – não desconsidere ninguém como potencial consumidor por causa de convicções pessoais ou falta de informações. Mulheres são consumidoras de cervejas e podem abrir um mercado gigantesco. Além de pessoas de outras regiões do país. Apostar apenas no homem branco jovem e de classe média alta pode trazer um retorno imediato mais fácil, mas, além de ser um grupo altamente disputado, não traz perspectiva de crescimento a longo prazo.

 

O desafio é enorme e são muitas armadilhas que estarão pelo caminho, mas talvez precisemos dar alguns passos atrás para voltarmos a pisar em um solo mais firme daqui pra frente.

 

Fonte complementar: Uma história ilustrada do mercado de cerveja artesanal nos Estados Unidos – Catalisi

 

*Apoie o Surra de Lúpulo clicando aqui.

 

Nana Ottoni

Gostou deste conteúdo? Compartilhe com seus amigos.

Confira os últimos posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Cadastre-se na Hop-Pills

* indicates required