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A primeira cervejaria brasileira – Programas históricos | SdL #218

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No programa de hoje, vamos explorar a história da primeira cervejaria brasileira, dando sequência à nossa série documental dedicada às situações e personalidades históricas que deixaram sua marca no universo da cerveja. Esta série foi enriquecida pela colaboração de Sérgio Barra (Profano Graal), sommelier e historiador, responsável pela pesquisa detalhada sobre o tema.

 

🎧 Ouça na íntegra:


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A primeira cervejaria brasileira

 

A questão Bohemia 📍

Petrópolis RJAo pensar na história da cerveja no Brasil, talvez nem venha a sua cabeça a questão de qual foi a primeira fábrica de cerveja do país. Afinal, fomos bombardeados por uma mensagem repetida tantas vezes: a Cervejaria Bohemia, de Petrópolis (RJ), foi a primeira cervejaria do Brasil.

Essa mensagem, muitas vezes reproduzida nas propagandas da Ambev, são confrontadas por documentos e quando isso vem em questão, os defensores afirmam que a Bohemia, ou melhor a filial de Petrópolis da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional de Henrique Leiden, criada em 1853, teria sido a primeira cerveja a ser produzida comercialmente. Antes dela, haveria no Brasil apenas a produção caseira. Mais uma vez, existe um bom número de documentos que desmentem essa afirmação, na forma de anúncios de cervejarias em jornais do Rio de Janeiro. Que propagavam os seus produtos ao público consumidor. 

Uma última tentativa de preservar o pioneirismo da Bohemia é afirmar que ela teria sido a primeira cervejaria a ser registrada. Essa afirmação a coloca em uma situação sem saída. Para começar, a afirmação não vem acompanhada de testemunhos documentais que a confirmem. Porque, na verdade, essa pesquisa ainda está por ser feita. A princípio, o que se pode afirmar é que não parece fazer sentido que cervejarias não “registradas” anunciassem os seus produtos nos jornais de maior circulação da capital do Império. Sob o risco de atrair a atenção e a fiscalização dos órgãos competentes. Admitindo, claro, que esse registro fosse obrigatório para o exercício da atividade comercial. Se, por outro lado, tal registro não fosse obrigatório e não impedisse a atividade da fábrica, não há motivos para se desconsiderar as outras fábricas anteriores como as reais introdutoras do ramo no Brasil.

Recapitulando a polêmica: a Cervejaria Bohemia foi propagada como a primeira fábrica do Brasil, mas há documentos que provam a existência de outras fábricas antes de 1853 e para manter a versão de primeira, se discute a parte de ter sido a primeira comercial, documentos também desmentem ou a primeira registrada, que é questionável pelo fato de não existirem comprovações ou mesmo da obrigatoriedade do registro na época.

Mas o fato é que, muito antes da criação da Bohemia, já existia em território brasileiro uma produção comercial de cerveja. 

 

A cerveja dos holandeses no Recife ⚓️

O primeiro registro de produção de cerveja na, então, América portuguesa vem do período de ocupação holandesa do Nordeste, entre 1630 e 1654. 

Por volta de 1640 chega ao Recife o mestre-cervejeiro Dirck Dicx, natural da cidade de Haarlem e filho de um prefeito do mesmo nome que também era proprietário de uma cervejaria denominada Het Scheepje (O Navio, em holandês da época). Provavelmente foi lá que Dicx, o filho, aprendeu o ofício, sendo depois cervejeiro da Halve Maen, também em Haarlen.

primeira cervejaria brasileira
FIGURA 1: Perfect Caerte der Gelegen theyt van Olinda de Pharnambuco Mauritsstadt ende t’Reciffo [Cartográfico] / gecartaert door Cornelis Golyath. FONTE: http://acervo.bndigital.bn.br
Ele foi o responsável pela instalação de uma cervejaria naquela que seria a residência de descanso do governador-geral das possessões holandesas entre 1637 e 1644, o Mauricio de Nassau. Conhecida como La Fontaine e localizada na zona norte de Recife, a residência foi alugada pelo prazo de quatro anos por 1.500 florins. Há ainda algumas controvérsias com relação ao período de funcionamento da cervejaria. Segundo o Mapa das cidades de Olinda e Recife, de autoria do cartógrafo Cornelis Golijath, datado de 1648 ela estaria ainda em funcionamento naquela data, você pode ver o mapa no nosso blog. E de acordo com Carlos Alberto Tavares Coutinho, existe documentação desta fábrica até o ano de 1654, que é o ano da expulsão definitiva dos holandeses de Recife.

Só existem notícias de Dicx até o ano de 1850 e não consta que ele tenha retornado a Haarlem até aquela data. A hipótese mais plausível é a de que tenha terminado os seus dias fabricando cerveja no Recife. Ou mesmo ter ido de arrasta pra cima por uma espada luso-brasileira durante as guerras de expulsão dos holandeses.

Nem só de cerveja se trata o processo de expulsão dos holandeses por tropas luso-brasileiras, ele acabou por se tornar um dos mitos fundadores da nacionalidade brasileira, impulsionado por uma historiografia tradicional nacionalista da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. A retomada do território das mãos do invasor estrangeiro serviria, então, como a primeira certidão de nascimento da nação. É nesse tipo de interpretação que se baseia a ideia de que as campanhas anti-holandesas marcam o nascimento do Exército Brasileiro, por exemplo. Essa historiografia difundiu no senso comum a ideia da existência de uma nação brasileira já no século XVII. É importante atentar para o fato, porém, de que a historiografia recente sobre o período colonial é contrária a essa interpretação. 

 

Os produtores caseiros “alemães” 🥨

A produção de cerveja em território propriamente nacional, ocorreu durante o Primeiro Reinado (1822-1831) no Rio Grande do Sul ainda nos primeiros anos após a Independência. Os caseiros da época eram os imigrantes de origem germânica que começavam a chegar ao Brasil. Durante o Primeiro Reinado (1822-1831).

As relações do Império do Brasil foram bem estreitas com os estados germânicos. Por meio da primeira Imperatriz, D. Maria Leopoldina, arquiduquesa da Áustria e filha do Imperador austríaco Francisco I; ou por meio da segunda, D. Amélia Augusta, filha do Duque de Leuchtenberg (Eugênio de Beauharnais) e da Princesa da Baviera, Augusta Amalia).

Essa proximidade resultou na criação de áreas de colonização agrícola a serem ocupadas por imigrantes germânicos. Entre 1824 e 1830 entraram no país aproximadamente 7 mil imigrantes procedentes de estados alemães. A maior parte desse contingente se instalou nas Províncias do Sul do país. onde o governo imperial, os governos provinciais ou mesmo companhias particulares de colonização estabeleceram colônias agrícolas, como as de São Leopoldo (RS), São Pedro de Alcântara, (SC) e Rio Negro (PR). 

O marco inicial da colonização alemã foi a fundação da colônia de São Leopoldo, em 25 de julho de 1824. O Lote nº 1 do plano diretor do núcleo urbano da nova colônia foi dado ao pedreiro natural da Baviera Ignácio Rasch, de 34 anos. Ignácio era um empreendedor, ele abriu um armazém de secos e molhados, um serviço de barcas destinado ao transporte de cargas pelo Rio dos Sinos e uma fábrica de cerveja. Na verdade, não era propriamente uma fábrica, mas uma pequena produção caseira, suficiente apenas para ser comercializada no seu próprio armazém. Infelizmente, pouco se sabe sobre Rasch e os seus negócios. Apenas que o imigrante morreu em São Leopoldo 11 anos depois de chegar, em 1835.

Edgar Köb afirma que era comum, entre esses pioneiros da produção cervejeira, a sua comercialização por meio de “vendas-cervejarias”. Onde eles “podiam vender sua cerveja caseira, ainda que de baixa qualidade, por estarem afastadas dos principais mercados”. Afirma ainda que “se estima a presença de mais de 100 destas vendas-cervejarias durante um certo tempo no Rio Grande do Sul”. Com esse termo, Köb provavelmente está se referindo a armazéns de secos e molhados onde se produzia também cerveja. E que servia também de moradia do proprietário, uma vez que era muito comum, até o começo do século XX, que o comerciante morava no andar superior ou, até mesmo, nos fundos do seu negócio.

O mercenário alemão Carl Gustav Seidler, passou pela colônia de São Leopoldo em algum momento entre 1825 e 1828. E no livro que escreveu sobre o tempo que passou no Brasil (Dez anos no Brasil, 1835) afirmou que ali “estavam em vias de se estabelecer alguns cervejeiros, que certamente aqui hão de fazer bons negócios, pois a cerveja que é importada da Inglaterra e de Hamburgo é horrivelmente cara, por causa do transporte e dos impostos constantemente crescentes”. Por isso, esses comerciantes incorporaram a produção de cerveja nos seus negócios por ser uma atividade bastante lucrativa.

Por esse motivo, é comum se afirmar que os pioneiros da produção de cerveja no Império do Brasil eram, senão todos, na sua maioria imigrantes germânicos ou descendentes daqueles. E que o desenvolvimento do setor cervejeiro está fundamentalmente ligado às áreas de concentração desses imigrantes.

 

A primeira indústria do Brasil independente 🥃

Em dois anúncios publicados no Jornal do Commercio em 1829 (26 e 27 de agosto), a destilaria aparece em funcionamento já no endereço da Rua d’Ajuda nº 67: “Na fábrica de destilação da rua d’Ajuda n. 67, vende-se vinho de Catalunha a 120 réis. o quartilho, vinho de Bordeaux ordinário a 16 réis. ao quartilho, açúcar refinado a 160 réis. a libra, xarope de limão, capilé, rum, genebra &c. por preço cômodo”.

destilariaO mais antigo anúncio de uma fábrica de cerveja em funcionamento na capital do Império do Brasil, aparece na edição de 15 de novembro de 1831 do jornal Correio Mercantil (RJ): “Na Fábrica de Cerveja da rua d’ajuda n. 67, vende-se além dos gêneros pertencentes à dita fabricação, e destilaria, bagos de zimbro novamente chegados de Hamburgo, e baunilha de primeira sorte, por preços cômodos”. 

O que nos leva a crer que a primeira fábrica de cerveja do Brasil independente parece ter surgido do desdobramento de outra tipologia de negócio: uma destilaria. De fábrica de destilados, parece ter passado a loja de bebidas para, por fim, transformar-se em fábrica de cerveja ao longo do segundo semestre de 1831. Apesar de nunca ter deixado de funcionar como um comércio de insumos (especificamente zimbro e baunilha) e de produzir destilados. 

Ao longo do mês de setembro de 1831, já haviam sido publicados outros três anúncios com o mesmo endereço da rua d’Ajuda 67. Porém, o negócio era anunciado como uma loja de bebidas e não uma fábrica de cerveja: “Na loja de bebidas da rua d’Ajuda n. 67, vendem-se bagos de zimbro novamente chegados e baunilha de primeira sorte por preços muito cômodos”. E é como loja de bebidas, ou armazém onde também se vende cerveja, que o mesmo endereço vai aparecer em anúncios de novembro de 1831, janeiro, fevereiro e março de 1832. 

Anúncios nas edições de 24 de novembro e de 28 de dezembro de 1832, do Correio Mercantil, finalmente nos informam o nome da cervejaria:

 

Na rua d’Ajuda n. 67, acha-se a excelente cerveja nacional, muito boa para conservar nesta estação quente as forças digestivas, e mormente quanto estamos ameaçados pela invasão do cólera morbus, o preço é muito cômodo e, para as pessoas mais delicadas, usada com água ela prova magnificamente: da vontade de comer e ativa a circulação.

 

Depois de algumas mudanças de endereço nos anos de 1833 e 1835, primeiro para a Rua da Misericórdia 29 (Jornal do Commercio, de 3 de agosto de 1833) e depois para o número 64 da mesma rua (Jornal do Commercio, 24 de fevereiro de 1835), parece que a história da pioneira fábrica de cerveja do Brasil independente chega ao seu fim. Nas edições de 18 de março e de 23 de abril de 1835 do Jornal do Commercio encontramos dois anúncios de leilão dos bens da cervejaria: 

 

O mesmo [Frederico Guilherme, leiloeiro] fará amanhã, às 11 horas em ponto, na rua da Misericórdia n. 64, de todos os artigos pertencentes à fabricação de cerveja dos Srs. Vidal e Cia., constando de caldeiras de cobre, filtros, cerveja engarrafada e em barricas, cupulo [sic], aniz engarrafado, genebra em barris e engarrafada; coriambo [sic], diversas ferramentas de tanoeiro, diversos trastes, uma barra de ferro, uma bomba de cobre, um carro forte de carregar pipas, etc. Adverte-se que tudo será arrematado impreterivelmente a quem mais der, por conta dos ditos Srs. que se retiram para a Europa.

 

Esse anúncio nos informa o nome dos proprietários dessa fábrica: os Srs. Vidal e Cia. Anúncio publicado nas edições de 28 de julho e 1 de agosto de 1827 do Diário Mercantil (RJ) nos informa que Vidal e Cia. eram proprietários de uma destilaria:

 

Vidal e Cia. tem a honra de participar ao público que tendo posto em atividade a Fábrica de Destilação [ilegível] na Praia Formosa n. 67, eles se incumbem de destilar e restilar [sic] todas as qualidades de aguardentes e espíritos de qualquer [ilegível] em qualquer porção que se queira, assim como de fazer licores de todas as qualidades. Dirigir-se na dita Fábrica ou na casa de Raimundo Morunge irmãos, negociantes rua da Cadeia n. 45, ou de Nicolao Masson na mesma rua n. 186

 

Sobre a motivação que teria levado os proprietários a mudar da fabricação de cachaça, produto de consumo já consolidado desde o Período Colonial, para a de cerveja, cujo consumo naquele momento parecia estar ainda praticamente restrito a imigrantes do Norte da Europa, pode ter tido alguma influência a lei 7 de novembro de 1831, que declarava ilegal a importação de escravizados. A expectativa de que aquela lei se cumprisse (o que não aconteceu, passando para a história como a famosa “lei para inglês ver”), acabaria com o lucrativo comércio de cachaça para África em troca de escravizados. A aposta do Sr. Vidal e seus sócios se mostrou equivocada. E, apenas quatro anos depois a sua fábrica encerrava as atividades, como ficou dito acima.  

 

Conclusão: a primeira cervejaria brasileira 🍻

Dessa forma, para além dos fatos brutos, a história sempre deixa margens a interpretações. E é isso que faz da História uma ciência propriamente humana. 

Então, se você é adepto da corrente historiográfica nacionalista e concorda que existia uma nação Brasil já no século XVII, e que uma cervejaria criada e dirigida exclusivamente por holandeses pode ser considerada uma cervejaria “brasileira”, então você pode considerar a cervejaria de Recife como a primeira cervejaria do Brasil. Talvez, seja mais conceitualmente correto considerar que aquela foi a primeira cervejaria em funcionamento no território do que viria a ser o Brasil. Mas que, naquele momento, não era uma nação independente, mas uma colônia holandesa na América do Sul. 

Da mesma forma, se você considerar que a produção dos imigrantes alemães nas suas vendas-cervejarias, nas colônias do Rio de Grande do Sul, pode ser interpretada como fábricas de cerveja, então a primeira cervejaria do Brasil seria o negócio de Ignácio Rasch, em São Leopoldo. 

Se preferimos nos ater a um maior rigor conceitual sobre o que seria uma cervejaria e, sobretudo, a partir de que momento pode se considerar que o Brasil fosse uma nação, então devemos nos concentrar sobre as fábricas que produziam comercialmente após 1922. A partir de então, uma indústria criada no Brasil não tem porque não ser considerada uma indústria brasileira, independente da nacionalidade do seu proprietário ou dos seus funcionários. Definidos os critérios, reduz-se a margem de incerteza e o espaço para interpretações. 

A esse respeito, segundo o estado atual da pesquisa, a documentação de época (e aqui foram privilegiados os periódicos) é assertiva em apontar, até o momento, a Cervejaria Nacional, criada no Rio de Janeiro por Pedro Vidal e Cia. em 1831, como desdobramento do seu negócio de destilação, como a primeira cervejaria brasileira. 

 

🍻 tim-tim e até a próxima 🍻

 

📚 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 📚

 

BARRA, Sérgio. História da cerveja no Brasil – começando do início. Guia da Cerveja. 16 de maio de 2021. Disponível em: Profano Graal: História da cerveja no Brasil – Começando do iniício (guiadacervejabr.com) 

BARRA, Sérgio. História da cerveja no Brasil – Os imigrantes e a produção caseira. Guia da Cerveja. 13 de junho de 2021. Disponível em: História da cerveja no Brasil – Os imigrantes e a produção caseira (guiadacervejabr.com)

COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: http://cervisiafilia.blogspot.com.br/

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021.

ROTOLO, Tatiana; MARCUSSO, Eduardo. A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil. Contextos da alimentação: Revista de comportamento, cultura e sociedade. São Paulo: Centro Universitário Senac.Vol. 6, nº 1, Julho 2019, p. 73-93.

 

👉 Ouça também: Surra de Lúpulo #216: A história das Alewives

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