No episódio de hoje da nossa série documental, mergulhamos no fascinante universo de Ninkasi e as Deusas da cerveja. Com a colaboração do sommelier e historiador Sérgio Barra, exploraremos figuras históricas e momentos que moldaram a cultura cervejeira, com destaque para Ninkasi, a deusa suméria da cerveja, e outras divindades que influenciaram essa bebida milenar.

Ouça o episódio na íntegra:

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Deusas da cerveja

A relação entre cerveja e religiosidade é antiga e um dos fatos que pode comprovar isso é a existência de Deusas da Cerveja em diversas civilizações antigas, como na África, Oriente Médio e Europa. Sítios arqueológicos mostram que o consumo religioso da cerveja remete a períodos anteriores à sedentarização, sendo antes de suas funções recreativas, sociais e alimentares. 

Não é novidade a ideia que as bebidas alcoólicas têm propriedades sobrenaturais, que alteram o estado de consciência dos homens, ajudando-os a entrar em contato com os Deuses: 

“Para os bebedores neolíticos, a capacidade da cerveja de embriagar e induzir a um estado de consciência alterada parecia algo mágico. O mesmo valia para o misterioso processo de fermentação, que transformava mingau em cerveja”. (STANDAGE, 2005, p. 17) 

Para aqueles homens e mulheres, a cerveja era um presente dos deuses. Como era o meio para as pessoas entrarem em contato com os Deuses, era consumida em cerimônias religiosas, funerais e rituais de fertilidade. Mesmo que não tenha comprovação documental sobre isso, não exageramos em dizer que quem descobriu a cerveja foi uma mulher. Afinal, era atribuído a ela o papel de preparação e serviço da cerveja.

Ainda sobre esse tema, o conceito de “descobrimento da cerveja” (melhor seria dizer, da fermentação) seja controverso. As sociedades do antigo Oriente Próximo, como sumérios e babilônios, eram sociedades patriarcais e, portanto, machistas, mas nem sempre o papel social das mulheres nessas sociedades era de total submissão ao homem.

Na Mesopotâmia, mulheres pertencentes à elite podiam assumir o poder (no papel de rainha ou de esposas do rei) e influenciar as decisões de governo. Algumas administravam seus próprios negócios, usufruindo de certo grau de independência jurídica. Na sociedade babilônica elas podiam fechar contratos, apresentar-se aos tribunais e ocupar cargos administrativos.

Enquanto, as mulheres que não pertenciam à elite, tinham papéis atribuídos mais ligados ao matrimônio, à manutenção da casa e reprodução da mão-se-obra (ou seja, a maternidade). 

Em uma sociedade patriarcal e machista, o homem podia manter uma concubina ou uma escrava. Que não tinham a mesma posição social que a esposa legítima. O marido podia entregar a sua mulher a um credor como fiança para pagar uma dívida com seu trabalho. 

As mulheres eram responsáveis pela fabricação do alimento e pelo cuidado da casa e dos filhos. Logo, responsáveis pela produção do pão e da cerveja, bebida bastante consumida e valorizada pelas pessoas da Antiguidade. Também eram responsáveis pela comercialização, que ficava a cargo da cervejeira/taberneira na Mesopotâmia. 

Na vida religiosa as mulheres também tinham lugar de destaque, sobretudo como sacerdotisas nos templos das divindades femininas. Na Mesopotâmia, as sacerdotisas provinham de posições sociais elevadas. 

Nos templos dos deuses principais, poderiam provir da família real. Ou seja, tinham algum grau de parentesco com o rei. Muitas vezes, suas filhas. Uma vez que os templos não eram apenas locais de culto, mas administradores dos tributos, pagos em forma de grãos e outras mercadorias, a sua função era não apenas religiosa, mas também econômica e política. O que exigia que fossem alfabetizadas. Afirma mesmo Simone Dupla que:

 

“Um dos maiores orgulhos dos mesopotâmicos era o fato de haver sacerdócio feminino, a ponto de colocarem como sinal de selvageria ou de primitivismo que os povos estrangeiros não tivessem um clero feminino (…) Assim, para os habitantes da terra entre os dois rios, a existência de grupos femininos no serviço dos deuses era sinal de civilidade e servia como parâmetro para medir outras sociedades, cujas culturas as mulheres não participavam do ofício divino” (DUPLA, 2020, p. 331)

 

A importância da cerveja na sociedade e na religiosidade suméria, e o papel das mulheres no seu preparo está representado pelo Hino à deusa Ninkasi.

Por isso, neste episódio iremos nos concentrar nos atributos e representações da deusa suméria da cerveja. Talvez a deusa da cerveja mais conhecida no meio cervejeiro devido à divulgação do Hino em sua homenagem. Que nada mais é do que uma receita de cerveja. Discutiremos também as tentativas de reprodução dessa receita em tempos recentes. 

NINKASI – A DEUSA SUMÉRIA DA CERVEJA

ninkasiHá aproximadamente 10.000 anos, na Mesopotâmia, povos nômades começaram a se sedentarizar e a cultivar cereais na região do Crescente Fértil (os vales dos Rios Nilo, Tigre e Eufrates).

Como explica Tom Standage, ao fim da última Era do Gelo, as terras altas da região forneciam um ambiente ideal para carneiros selvagens, bodes, gados e porcos, assim como plataformas densas de trigo e cevada selvagens:

 

“Isso significava que o Crescente Fértil oferecia certos locais específicos extraordinariamente ricos para bandos ambulantes de caçadores-coletores humanos. Eles não só caçavam animais e colhiam plantas comestíveis, mas também juntavam os cereais abundantes que cresciam de forma selvagem na região.” (STANDAGE, 2005, p. 13)

 

Standage trata que, embora inadequados para o consumo quando estão crus, estes grãos podem se tornar comestíveis sendo esmagados ou comprimidos e depois mergulhados na água.

O autor chama a atenção para duas propriedades importantes desses grãos: primeiro, o fato de que eles podiam ser armazenados durante meses ou mesmo anos até o momento do consumo. Bastando, para isso, que fossem mantidos secos e em lugar seguro. E, em segundo lugar, a descoberta de que, quando embebidos em água, eles começaram a brotar com gosto doce. Deixados parados por alguns dias, esses grãos umedecidos passavam por uma transformação, tornando-se ligeiramente efervescentes e agradavelmente embriagantes. Ou seja, transformavam-se em cerveja 

Vestígios encontrados no sítio arqueológico de Godin-Tepe, posto comercial avançado nas primeiras redes comerciais da Mesopotâmia, localizado nas montanhas Zagros no Oeste do atual Irã, datados de 3100–2900 a.C, foram considerados durante muito tempo a prova mais antiga da história de produção de cerveja e vinho. Outra descoberta importante são os chamados Blau Monuments. Um par de tabuletas em pedra, também datado de cerca de 3.100 a.C., que registra transações econômicas e passagem de propriedade de terrenos.  

Apesar das práticas e crenças religiosas dos sumérios terem variado muito ao longo do tempo, a religião está na base da organização social da sociedade suméria. Os sumérios viviam em cidades-estados erguidas em torno do templo (ou templos) dedicado ao seu deus protetor. Por isso, também eram denominadas de cidades-templo. Os sumérios acreditavam que os deuses as haviam fundado para que fossem centros de culto dedicados a eles.

A importância religiosa de cada deus variava de acordo com o poder político da cidade ao qual ele estava associado. As cidades eram governadas por um líder local (patésis), rei (lugal) ou supremo-sacerdote. Os templos estavam ligados ao poder estatal e os soberanos eram, ao mesmo tempo, chefes políticos e religiosos.

As cerimônias religiosas sumérias incluíam colocar uma refeição à mesa no templo diante de uma imagem divina, seguida de um banquete no qual o consumo de comidas e bebidas pelos sacerdotes e fiéis invocava a presença dos deuses e os espíritos dos mortos. 

As divindades sumérias eram antropomórficas e representavam forças ou presenças no mundo material. Por exemplo, Inana (ou Ishtar) é a deusa do amor, do erotismo e da fertilidade; Enlil é o deus das tempestades e outras manifestações atmosféricas; e Apsu era o deus das águas doces e fontes subterrâneas. Assim, Ninkasi era a deusa da cerveja e da fermentação. O seu nome pode significar a “dona da cerveja”. Também já foi proposta a tradução do seu nome como “a senhora que enche a boca”. Mas atualmente os filólogos descartam essa tradução .

Ela é uma das oito divindades nascidas no final do mito Enki e Ninhursag. Essas divindades representam oito partes do corpo. E Ninkasi representaria a boca (ka). O que teria levado à interpretação incorreta do seu nome. É possível que no primeiro milênio a.C. ela fosse conhecida pelo nome variante Kurunnītu, derivado de um termo que se refere a um tipo de cerveja de alta qualidade (Kurun). Ela também poderia ser emparelhada com Siraš, uma deusa de caráter semelhante, que às vezes era considerada sua irmã.

Também é atestada uma possível associação entre ela e as divindades do submundo Nungal e Laṣ, possivelmente em referência aos efeitos negativos do consumo de álcool. Uma vez que ela era associada à produção e consumo de cerveja, e também às suas consequências, tanto positivas quanto negativas.

Mas não estava ligada ao comércio de cerveja ou às profissões ligadas a esse comércio (taberneiras ou garçonetes). Era considerada a “cervejeira de Ekur”, a morada dos deuses. O correspondente na religião suméria ao Olimpo da religião greco-romana. Em outras interpretações ela pode ser também a própria cerveja. Assim como Nisaba era a deusa dos grãos e o próprio grão. 

Era uma divindade secundária, sem uma personalidade fortemente definida. Simbolizando apenas o objeto ou fenômeno ao qual estava associada. Não estava ligada a qualquer cidade, mas adorada como divindade “universal” em várias partes da Mesopotâmia. Não é conhecido um centro de culto. Qualquer cidade onde se bebesse cerveja podia ser considerada uma cidade de Ninkasi.

Seu culto é atestado em documentos administrativos da Primeira Dinastia de Shuruppak, centro de culto do Sul da Mesopotâmia (3.000 a.C.). É possível que tivesse um templo em Eridu e em Nippur. E, no período da Terceira Dinastia de Ur (2112 a.C. – 2004 a.C.), era cultuada na cidade de Umma. A hipótese é a de que as suas sacerdotisas teriam sido as primeiras cervejeiras, ou o contrário. 

Atualmente são conhecidas três cópias do Hino a Ninkasi, uma de Nippur e duas de locais desconhecidos. Devido à falta de referências a eventos históricos e ao estilo propositalmente arcaico dos textos literários, não é possível datar com precisão a composição do hino, mas concorda-se que as tabuinhas conhecidas vêm do período do  Primeiro Império Babilônico ou como Império Babilônico Antigo (c. 1894 a.C. – c. 1595 a.C.).

Como ressalta Peter Damerow, em todas as três cópias o Hino vem acompanhado de outro poema. Uma espécie de canção de beber (drinking song), provavelmente dedicada a uma taberneira na cerimônia de inauguração da sua taberna. O que se segue é a reprodução integral do texto do Hino:

 

Nascida da água corrente,

Delicadamente cuidada por Ninhursag

Nascida da água corrente,

Delicadamente cuidada por Ninhursag

Tendo fundado sua cidade junto ao lago sagrado,

Ela rematou-a com grandes muralhas por você,

Ninkasi, tendo fundado sua cidade junto ao lago sagrado,

Ela rematou-a com grandes muralhas por você.

Seu pai é Enki, Senhor de Nidimmud,

Sua mãe é Ninti, a rainha do lago sagrado,

Ninkasi, seu pai é Enki, Senhor Nidimmud,

Sua mãe é Ninti, a rainha do lago sagrado.

Você é aquela que manuseia a massa com uma grande pá,

Misturando em uma cova o bappir com ervas aromáticas doces,

Ninkasi, você é aquela que manuseia a massa com uma grande pá,

Misturando em uma cova o bappir com tâmaras ou mel.

Você é aquela que assa o bappir no grande forno,

Coloca em ordem as pilhas de sementes descascadas,

Ninkasi, você é aquela que assa o bappir no grande forno,

Coloca em ordem as pilhas de sementes descascadas,

Você é aquela que rega o malte colocado no chão,

Os nobres cães mantêm à distância até mesmo os soberanos,

Ninkasi, você é aquela que rega o malte colocado no chão,

Os nobres cães mantêm à distância até mesmo os soberanos.

Você é aquela que embebe o malte em um cântaro

As ondas sobem, as ondas caem.

Ninkasi, você é aquela que embebe o malte em um cântaro

As ondas sobem, as ondas caem.

Você é aquela que estica o purê cozido em grandes esteiras de junco,

A frieza domina.

Ninkasi, você é aquela que estica o purê cozido em grandes esteiras de junco,

A frieza domina.

Você é aquela que segura com ambas as mãos o grande doce mosto,

Fermentando-o com mel e vinho

(Você, o grande doce mosto para o vaso)

Ninkasi, (…) (Você, o grande doce mosto para o vaso).

A cuba filtrante que emite um som agradável,

Você coloca apropriadamente no topo de um grande barril coletor.

Ninkasi, cuba filtrante que emite um som agradável,

Você coloca apropriadamente no topo de um grande barril coletor.

Quando você despeja a cerveja filtrada do barril coletor,

é como os barulhos dos cursos do Tigre e do Eufrates.

Ninkasi, você é aquela que despeja a cerveja filtrada do barril coletor,

é como os barulhos dos cursos do Tigre e do Eufrates.

 

Apesar de ser uma descrição de um processo de fabricação de cerveja, estudos recentes conduzidos pela arqueóloga Adelheid Otto (especialista em Oriente Próximo da Universidade Ludwiwg-Maximilian de Munique), pelo técnico cervejeiro Martin Zarnkow (da Universidade Técnica de Munique / Weihenstephan) e pelo assiriologista Walther Sallaberger (também da Universidade Ludwiwg-Maximilian de Munique) indicam que as instruções dadas no hino, conforme normalmente traduzido, não se alinham totalmente com as informações conhecidas sobre a produção de cerveja na antiga Mesopotâmia.

O que cria a necessidade de análises adicionais e uma atualização da tradução de fragmentos da composição de acordo com descobertas mais recentes. Sallaberger argumenta que as referências ao mel, por exemplo, podem ser um artifício puramente literário com a intenção de realçar a qualidade e o aroma da cerveja preparada por Ninkasi, uma vez que o mel era um bem de luxo caro na Mesopotâmia e, como tal, não servia para preparar bebidas comuns.

Tom Standage explica que o bappir citado no Hino a Ninkasi, pode ser chamado também de pão de cerveja, e era feito moldando-se os brotos de cevada em torrões que eram cozidos duas vezes para produzir um pão marrom-escuro, crocante, sem levedura, que podia ser armazenado por anos antes de ser esfarelado no barril do fermentador. Não era um ingrediente alimentício, mas uma forma conveniente de se armazenar a matéria-prima para o preparo da cerveja. Era guardado em armazéns do governo e comido somente durante períodos de escassez. 

O matemático, filósofo e historiador da ciência Peter Damerow (1939-2011), por outro lado, com base no seu conhecimento da linguagem cuneiforme, discorda dessa interpretação dada por Standage ao significado de bappir. Segundo ele, não seria uma espécie de “pão de cerveja”, mas sim cevada ou outro grão moídos de uma forma específica: 

 

“O ingrediente “bappir” da Antiga Suméria nunca foi contado como seria de esperar se fosse, de fato, uma espécie de pão. Em vez disso, foi registrado utilizando medidas de capacidade tal como a cevada moída grosseiramente nos documentos proto-cuneiformes anteriores, que foi agora substituída por “bappir”. (DAMEROW, 2012, p. 7)

 

Damerow questiona mesmo que o Hino a Ninkasi possa ser interpretado como uma receita de cerveja. Ele aponta que a sequência de passos da produção da cerveja descrita no poema é incompleta. Com muitas passagens implícitas. Que nós apenas podemos supor que ocorreram a partir daquilo que nós sabemos sobre a produção de cerveja hoje. Não se informa, por exemplo, como o processo de germinação foi interrompido no ponto certo. Assim, ele argumenta que a interpretação do Hino como uma receita seria fruto da projeção anacrônica de nossos conhecimentos atuais.

“Tal interpretação do Hino a Ninkasi como representando os passos do processo de fazer cerveja dificilmente é possível sem aplicar o conhecimento moderno da química da fabricação da cerveja. Dado que muitas passagens do texto são obscuras, a tradução é influenciada em grau considerável pelo conhecimento da tecnologia cervejeira moderna”. (DAMEROW, 2012, p. 15)

 

Tentativas contemporâneas de produção de uma cerveja a partir das instruções dadas pelo hino não têm sido bem sucedidas em gerar um produto comercialmente atrativo. Como, por exemplo, a feita pela cervejaria Great Lakes, Ohio, em 2013, com a ajuda de arqueólogos da Universidade de Chicago.

Os cervejeiros utilizaram recipientes de cerâmica, pás de madeira, e recrutaram um padeiro de Cleveland para tentar reproduzir o bappir. Temperada com cardamomo e coentro, a cerveja parece ter ficado excessivamente azeda para os paladares modernos.

Anteriormente, ainda na década de 1990, outra tentativa já havia sido feita pela Anchor Brewing, de São Francisco, com a ajuda de Salomon Katz, professor do Departamento de Ortodontia da Universidade da Pensilvania e um defensor da tese da “cerveja antes do pão”.

Foi usada uma mistura de mel e farinha de cevada para produzir o bappir. O que já estaria em desacordo com os estudos posteriores de Damerow, citados anteriormente. Posteriormente, foram adicionadas tâmaras na fase de fermentação. A cerveja foi pasteurizada, para garantir a sua preservação. Processo pelo qual, obviamente, as cervejas sumérias não passavam. A cerveja foi servida na reunião da Brewers Association, ao estilo sumério, em grandes jarras e bebida através de canudos longos. A cerveja da Anchor, segundo Gregg Glaser, “tinha um sabor seco, nada amargo, e tinha gosto semelhante ao de uma sidra de maçã forte com uma fragrância pronunciada de tâmaras”. (GLASER, 2010)

Ao contrário da tentativa feita na Great Lakes, nesse caso, Fritz Maytag (proprietário da Anchor) e Salomon Katz pareciam estar mais preocupados com a drinkabilidade da cerveja do que com a exatidão histórica da sua recriação. 

Ninkasi é citada também no mito sumério Lugalbanda e o Pássaro Anzud, que se acredita que tenha sido escrito no período da Terceira Dinastia de Ur, entre c. 2112 a.C. e c. 2004 a.C. Mais antigo, portanto, do que o próprio Hino a Ninkasi.

Nele, o protagonista, o herói mitológico Lugalbanda, descreve em detalhes a atividade de Ninkasi enquanto planeja um banquete. Ele se refere a ela como “a mulher especialista, que rende crédito à mãe”, e afirma que seu tanque de fermentação é feito de lápis-lazúli, enquanto seu barril é feito de prata e ouro.

Segundo o Assiriologista e Sumeriologista britânico Jeremy Allen Black (1951-2004), a passagem sobre a deusa deve ser entendida como parte de uma elaborada descrição metafórica da cerveja que Lugalbanda planeja servir no banquete. A deusa mesmo não é uma participante dos eventos do mito. Ninkasi também é citada em uma passagem onde ela coloca o herói para dormir. O que, provavelmente, é outra metáfora ao consumo de cerveja.   

 

Ninkasi a especialista que rende crédito à sua mãe,

Ninkasi a especialista que rende crédito à sua mãe,

Seu tanque de fermentação é de lápis-lazúli verde,

Seu barril de cerveja é de prata refinada e ouro.

Se ela ficar ao lado da cerveja, há alegria;

Se ela sentar ao lado da cerveja, há alegria;

Como copeira, ela prepara a cerveja,

Sem se cansar ao andar de um lado para o outro,

Ninkasi, o barril ao lado, na cintura, que ela torne meu serviço de cerveja perfeito.

 

Todas as representações de Ninkasi são modernas (do século XX em diante). Se conhece apenas uma estatueta que é atribuída à deusa. É possível que fosse representada segurando uma xícara. Além disso, ela pode estar entre as divindades mostradas em cenas de banquetes em itens como tabuleiros de jogos e fragmentos de instrumentos musicais. E, em algumas fontes posteriores, ela poderia até mesmo aparecer como uma divindade masculina. Fenômeno que se repete no caso de outras deusas (Nimmug e Ninshubur).

 

CONCLUSÃO

 

Em outras culturas politeístas também podemos encontrar deusas da cerveja. É o caso, por exemplo, de Hathor / Hesat no Egito Antigo, em homenagem à qual se realizava anualmente o Festival da Bebedeira; ou Ceres na cultura greco-romana, que acabou por batizar a cerveja ainda que a bebida não assumisse na Grécia e em Roma a mesma importância que assumia na Mesopotâmia ou no Egito. E, por fim, podemos falar das deusas celtas da intoxicação, como Braciaca, a deusa da intoxicação pela cevada, ou seja, da cerveja.  

Em sua maioria essas deusas estão associadas a atributos considerados femininos, sempre ligados à fertilidade da terra e das mulheres, como a agricultura, o parto e a nutrição. Exceções podem ser encontradas em deusas celtas ligadas à guerra. Como por exemplo, em inscrições que relacionam Braciaca ao deus romano da guerra, Marte. E é uma referência à intoxicação ritual dos guerreiros celtas antes das batalhas. Mostra como a guerra e a morte também poderiam ser considerados atributos femininos em sociedades menos patriarcais e machistas, como é o caso das sociedades celtas. 

Comparativamente, Ninkasi ocupa um lugar no panteão mesopotâmico inferior ao lugar que Hathor / Hesat ocupa no panteão egípcio ou que Ceres ocupa no panteão greco-romano. É curioso que ela tenha vindo a se tornar a deusa da cerveja mais conhecida. O que certamente foi fruto da reprodução do hino em sua homenagem e das discussões em torno da possibilidade de se produzir uma cerveja a partir das instruções do hino, recriando assim uma cerveja mesopotâmica.

 

cerveja tim-tim e até a próxima cerveja

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

Beba melhor. Beba com moderação.

Cerveja como moeda – Surra de Lúpulo #226

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Nana Ottoni

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