No programa de hoje do Surra de Lúpulo, vamos mergulhar em um tema que é o sonho de todo cervejeiro geek: as cervejas de fermentação natural. O que são essas cervejas? De onde vêm? Como funcionam? E o que as torna tão especiais? Para responder a essas perguntas e explorar o universo das fermentações naturais, contamos com a presença especial da Dra. Ana Carolina (a Carola Space Beer) e do especialista Diego Simão. Prepare-se para uma verdadeira aula!

 

Ouça o episódio do podcast na íntegra:

 

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Cervejas de fermentação natural

 

O que é uma cerveja de fermentação natural? E o que esperar do sensorial desse tipo de cerveja?

 

fermentação natural“A gente pode falar o seguinte, toda fermentação é natural, né?” – Diego Simão

 

Diego Simão sugeriu que é possível começar a discussão revertendo o conceito. Ele destacou que, tecnicamente, toda fermentação é natural, pois ainda não inventamos nano robôs capazes de realizar o processo de fermentação. Embora existam avanços, como a manipulação de leveduras, ainda estamos lidando com processos naturais.

Quando se fala em fermentação natural, ele acredita que o termo está sendo muito utilizado no mundo dos vinhos, especialmente em referência ao vinho natural ou vinho à natureza. Traduzindo para o universo cervejeiro, isso corresponderia às cervejas de fermentação selvagem ou espontânea, onde não há interferência na seleção dos micro-organismos.

Porém, ele ressalta que mesmo a ideia de “fermentação sem intervenção” é relativa, já que o simples ato de decidir fazer uma cerveja é uma forma de intervenção humana, afastando-se da espontaneidade completa.

Já Carola aponta que, dependendo da bebida, a fermentação espontânea envolve diferentes organismos. As leveduras e bactérias que participam da fermentação de um vinho ou de uma cachaça, por exemplo, são distintas daquelas que atuam na fermentação de uma cerveja. Isso ocorre porque as fontes de açúcar, que servem de alimento para esses organismos, são diferentes em cada caso.

Ela explicou que a escolha da bebida que será fermentada já determina quais organismos estarão presentes, pois cada tipo de açúcar atrai diferentes micro-organismos. Um exemplo disso é a manipoeira, onde os organismos presentes são específicos para metabolizar aquele tipo de açúcar. Portanto, a escolha do açúcar já direciona o processo, tornando-o menos “espontâneo” do que parece, como Diego mencionou.

Carola também destacou que essa direção no processo é positiva, pois permite alcançar um produto desejado e conhecido, em vez de algo completamente aleatório, como uma seiva de árvore fermentada. Quanto à parte sensorial, comentou que, embora exista uma tendência de cervejas de fermentação espontânea serem ácidas devido aos organismos envolvidos, ela já experimentou cervejas desse tipo que não apresentavam acidez. No entanto, reconheceu que a acidez é uma característica comum nessas fermentações.

Diego Simão destacou que em uma fermentação natural, a presença de bactérias é inevitável, mas a ação delas pode não ser tão evidente. Nas cervejas selvagens, espera-se que em algum momento elas desenvolvam acidez. No entanto, ele observou que, embora uma cerveja possa começar sem acidez, ela pode se tornar ácida no final do processo fermentativo. Ainda assim, é possível produzir cervejas com um uso maior de lúpulo que não sejam necessariamente ácidas, o que demonstra a variedade de possibilidades e o controle que se pode ter sobre o processo.

Respondendo à questão sobre as expectativas em relação ao resultado, Diego explicou que é difícil prever exatamente o que esperar de uma fermentação selvagem. Ele citou o exemplo da cerveja de manipueira selvagem, um projeto que envolveu um trabalho científico detalhado liderado por Carola e sua equipe, onde foi possível acompanhar os micro-organismos responsáveis pela fermentação. Apesar de essa cerveja apresentar variações dependendo do local de produção, como em Santa Catarina, Ribeirão Preto ou no Nordeste, certas características, como acidez lática, sabor cítrico e notas de polvilho azedo, tendem a ser comuns devido à semelhança na origem dos micro-organismos.

Diego observou que, embora a manipueira selvagem possa ser considerada um estilo dentro das cervejas selvagens, muitas cervejas dessa categoria não seguem um estilo definido, o que torna difícil prever o resultado final. Para ele, essa imprevisibilidade é justamente o que torna as cervejas de fermentação natural e selvagem tão interessantes e atraentes. A surpresa e a falta de expectativas são parte do charme dessas cervejas.

Carola explicou que, ao iniciar um processo de fermentação, especialmente se você estiver abrindo uma cervejaria e começando a produzir sua primeira cerveja selvagem, é provável que o primeiro tanque não tenha um bom resultado. Isso acontece porque os micro-organismos ainda não foram devidamente selecionados. A chance de o primeiro lote sair ruim é grande, mas com o tempo, à medida que você vai experimentando e avaliando, acaba identificando quais fermentações ficaram boas e quais não. As boas são aproveitadas, e as ruins são descartadas. Esse processo leva à domesticação e seleção dos micro-organismos que produziram a cerveja de qualidade, tornando-os a base para as futuras produções.

Ela mencionou que, a menos que o processo seja sempre espontâneo, cada fermentação vai se tornando mais refinada ao longo do tempo. Para que uma fermentação seja completamente espontânea, seria necessário coletar micro-organismos de diferentes lugares constantemente. Em fábricas como a da Cozalinda ou da Companhia dos Fermentados, ou mesmo na Canteon, a microbiota já está estabelecida, tendo sido selecionada ao longo do tempo.

Por outro lado, se alguém, como Diego, decidisse abrir uma fábrica em um lugar completamente novo, como no meio da Amazônia, o processo começaria do zero. Inicialmente, ele teria que lidar com micro-organismos desconhecidos até conseguir, após várias tentativas, alcançar um produto de excelência. Carola enfatizou que tudo isso faz parte de um processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento.

 

Você não vai conseguir definir muito por causa do sensorial, você vai definir muito mais por causa da receita, por causa da base que você acabou utilizando.” – Carola Cardoso

 

Diego Simão explicou que, com certa experiência, é possível prever como uma cerveja selvagem vai se desenvolver ao analisar a receita e a composição do mosto. Observando os tipos de açúcares presentes, se são mais simples ou complexos, e o grau de amargor (medido em IBU), é possível ter uma ideia de como a fermentação selvagem poderá se comportar. Ele destacou que esses parâmetros oferecem indícios importantes sobre o resultado final da cerveja.

Diego mencionou que a acidez de uma cerveja selvagem depende muito da receita. Por exemplo, suas cervejas mais conhecidas têm uma base de 9 IBU, o que limita a fermentação acética por bactérias mais simples, embora o Pediococcus ainda atue. Já em suas saisons, que utilizam 25 IBU, há uma maior carga de lúpulo para controlar os micro-organismos, resultando em uma acidez muito baixa. Portanto, mesmo ambas sendo cervejas selvagens, os resultados são diferentes.

Ele enfatizou que, embora seja possível fazer algumas previsões, não existe um padrão fixo para o que é uma cerveja selvagem em termos de receita básica. Esse é um dos desafios dessa categoria, que é muito ampla e difícil de definir com precisão. No caso da manipueira selvagem, eles conseguiram delimitar e estabelecer definições claras, o que permitiu que ela fosse reconhecida como um estilo específico dentro das cervejas selvagens.

 

Cientificamente falando como funciona o controle da fermentação natural? Como saber se a cerveja está pronta?

 

Carola explicou que, ao analisar estudos sobre fermentações espontâneas e selvagens, incluindo o trabalho realizado no processo da manipueira, é evidente que os primeiros organismos a iniciar a fermentação muitas vezes são patogênicos ou simplesmente micro-organismos ambientais que não contribuem positivamente para o sabor ou para a fermentação alcoólica desejada. Esses primeiros micro-organismos, que não são do interesse dos produtores, podem até ser prejudiciais.

Ela destacou que os micro-organismos desejados, como as leveduras do gênero Saccharomyces, começam a atuar mais tarde, geralmente após 5, 7, 10 ou até 15 dias de fermentação. Quando esses micro-organismos benéficos entram em ação, eles começam a produzir álcool, que por sua vez elimina os patogênicos e outros organismos indesejados que poderiam causar problemas como sabores desagradáveis ou até mesmo problemas de saúde.

Carola visualizou um gráfico onde as leveduras como as Saccharomyces não apenas eliminam os micro-organismos indesejados, mas também permitem que outros organismos que contribuem para o perfil sensorial e a complexidade da bebida prosperem. Ela enfatizou que, além das Saccharomyces, outras leveduras também desempenham um papel importante nesse processo, eliminando os patogênicos não apenas através da produção de álcool, mas também por meio de outros compostos, como ácidos, que reduzem o pH do ambiente, tornando-o inóspito para micro-organismos nocivos.

Diego Simão destacou a importância do controle no processo de produção de cerveja, observando que muito do conhecimento necessário já está disponível na literatura e é fácil de entender. Ele mencionou que o design do mosto, que envolve a escolha dos tipos de açúcares e de lúpulo, além da quantidade usada, desempenha um papel crucial no controle da fermentação.

Diego explicou que há várias estratégias disponíveis para controlar o processo, como ajustar o pH, mas enfatizou que o fator principal é a variedade de açúcares presentes no mosto. A seleção dos açúcares define quais micro-organismos irão prosperar e em que ordem. Por exemplo, a ideia é que micro-organismos que consomem açúcares simples atuem primeiro, seguidos por aqueles que metabolizam açúcares mais complexos.

Além disso, o controle da lupulagem é utilizado para regular a ação das bactérias durante a fermentação. Diego resumiu que esses vetores, a escolha dos açúcares e a manipulação do lúpulo, são os principais dinamizadores no processo de fazer cerveja.

 

Quais são os estilos mais indicados para fazer a fermentação natural?

 

Diego Simão compartilhou que, em suas primeiras palestras e cursos sobre produção de cerveja selvagem, ele começava enfatizando que “não há regras” para esse tipo de cerveja. Ele lembrou que, enquanto preparava um curso sobre cerveja selvagem promovido pela Cozalinda, percebeu que, em 2018, quando foi convidado por Diego Masiero para falar sobre o assunto, a principal mensagem que transmitia era a ausência de uma receita definitiva para cervejas selvagens.

Destacou que não existe um padrão específico para garantir que uma cerveja seja classificada como selvagem. Em vez disso, ele sugeriu começar com uma receita extremamente simples para experimentar e descobrir o resultado, sem esperar um resultado específico. Por exemplo, ele recomendou usar uma receita com baixo teor de lúpulo para evitar inibir o crescimento de micro-organismos selvagens. Ele sugeriu começar com uma base de malte Pilsen e adicionar 10 a 20% de malte de trigo para fornecer açúcares fermentáveis mais complexos, permitindo que as leveduras selvagens, como a breta, se desenvolvam.

Diego também aconselhou a manter o nível de lúpulo abaixo de 12 BU, pois o lúpulo pode inibir micro-organismos selvagens, especialmente as bactérias. Para começar, ele sugeriu fazer uma Catarina Sour, que é uma cerveja azeda brasileira, como uma maneira de entender a acidez e o perfil da fermentação. Após isso, a mesma receita poderia ser usada para uma fermentação selvagem, permitindo uma comparação entre fermentações com Saccharomyces e bactérias selecionadas versus fermentações selvagens.

Ele concluiu que a simplicidade é crucial no início. Fazer uma cerveja selvagem com ingredientes complexos, como uma stout com frutas vermelhas, torna difícil avaliar o impacto dos micro-organismos. Portanto, recomendou começar com receitas simples e claras, e sempre buscar aprendizado adicional, como cursos, para aprimorar a técnica.

 

O papel da levedura na cerveja é produzir o álcool e, claro, emprestar aromas e sabores para tornar essa cerveja única. É possível existir alguma previsibilidade nas cervejas de fermentação natural?

 

Diego Simão explicou que, embora seja possível controlar certos aspectos da produção de cerveja selvagem, isso não é tão preciso quanto em outros estilos de cerveja, como uma SB ou uma cerveja de trigo. Ele ressaltou que o controle pode ser feito através das escolhas de açúcares e lúpulo, especialmente quando a fonte dos micro-organismos é conhecida.

No entanto, a previsibilidade não é tão exata quanto em estilos mais tradicionais. Diego usou o exemplo da Praia do Meio para ilustrar isso. Em anos mais frios, a cerveja tende a apresentar um perfil de abacaxi em conserva, enquanto em anos mais quentes, o abacaxi é mais ácido e fresco. Esses resultados dependem das condições climáticas, que influenciam o perfil final da cerveja.

Comparou a cerveja selvagem a um “filho” bem conhecido, que, embora tenha uma certa previsibilidade, ainda é influenciado por variáveis ambientais e condições de fermentação. Com o tempo, e com a experiência acumulada desde 2016, Diego afirmou que o processo se torna mais familiar e previsível, mas não ao ponto de garantir resultados idênticos a cada vez.

Carola destaca que a experimentação com cerveja selvagem pode levar a resultados variados devido a diferentes condições ambientais, como temperatura e umidade. Essas variáveis afetam os organismos presentes na fermentação, resultando em respostas distintas. Mesmo dentro da mesma espécie de levedura, há uma grande variedade. Por exemplo, algumas Saccharomyces começam a flocular a temperaturas acima de 27 graus, enquanto outras o fazem a 15 graus. Isso significa que o metabolismo e a atuação dos organismos podem variar amplamente.

Carola também exemplificou com situações inusitadas, como a introdução acidental de uma nova levedura na fermentação, que pode alterar completamente o perfil microbiológico da cerveja. Ela enfatizou que, no mundo da cerveja selvagem, essas mudanças e surpresas são esperadas e fazem parte do processo.

Concluiu que a beleza da cerveja selvagem está na imprevisibilidade e na possibilidade de criar experiências únicas e memoráveis. Para ela, é essencial estar aberto a essas experiências e permitir que a inovação aconteça sem tentar controlar todos os aspectos do processo.

 

Durante uma viagem a Mendoza, na Argentina, Lud teve a oportunidade de visitar uma vinícola que oferecia a experiência de produzir o seu próprio vinho. Poderiam explicar o papel do master blender e discutir se seria possível proporcionar uma experiência semelhante no universo da cerveja?

 

Não só é possível, como essa é uma das atividades que vão acontecer nesse curso presencial que vai ter agora na CozaLinda. Entre as coisas que, obviamente, a intenção ali não é exatamente essa que você falou, mas ela vai acontecer na prática como isso também. Porque o que a gente vai fazer? A gente vai ter aula de blend na prática, a pessoa vai tomar as cervejas que tem na CozaLinda, e a gente vai fazer uma dinâmica de grupo ali para chegar até uma receita final.” – Diego Simão

 

Durante a aula de blending da Cozalinda, os participantes serão divididos em dois grupos, e cada grupo criará seu próprio blend. Em seguida, o blend mais interessante será escolhido, e todos levarão quatro garrafas desse blend para casa. Ele ressaltou que essa prática é muito empolgante, especialmente na Cozalinda, onde eles mantêm um enfoque em poucas variações de cerveja.

Além disso, Diego mencionou que também é possível adicionar frutas ao blend, utilizando cervejas que já contêm frutas. Ele comparou o processo de blending de cerveja ao do vinho, destacando que é uma prática simples, mas que exige habilidade. O processo envolve misturar as cervejas já prontas para criar um perfil sensorial desejado, definindo o caráter final da bebida.

Por fim, Diego destacou que o blending é uma arte essencialmente artesanal no mundo da cerveja. É através dessa prática que o cervejeiro desenvolve suas habilidades e cria perfis sensoriais únicos, tornando o blending uma das práticas mais criativas e gratificantes na produção de cervejas selvagens.

 

cerveja tim-tim e até a próxima cerveja

Beba melhor. Beba com moderação.

O que é cerveja selvagem?

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Nana Ottoni

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