Hoje, no Surra de Lúpulo, vamos falar de cerveja e arqueologia com o nosso amigo e já frequente convidado, Sérgio Barra, sommelier de cervejas, formado pelo Instituto da Cerveja Brasil (ICB), com especialização em Marketing de Cervejas pelo Instituto Marketing Cervejeiro. Criador e administrador do perfil Profano Graal, onde fala, escreve e pesquisa sobre História da Cerveja. Ouça o episódio na íntegra:
Esse programa só é possível graças aos nossos Mecenas Empresariais: Cerveja da Casa, Iris Pay, Cervejaria Uçá, Viveiro Van de Bergen e Prussia Bier.
Cerveja e arqueologia com Profano Graal
Quais são as diferenças e semelhanças entre História e Arqueologia? Todo arqueólogo é um historiador?
Sérgio: Olha a provocação, hein? Nem todo arqueólogo é um historiador, nem todo historiador é um arqueólogo. E eu vou aproveitar essa pergunta para justificar minha presença aqui, antes que os haters digam, qual é a desse cara? Esse cara agora acha que pode falar sobre tudo, é história, é publicidade de cerveja… tá achando o quê? Que é, sei lá, multi-instrumentista? Então eu vou justificar aqui que não sou arqueólogo. Sou historiador de formação e na formação de história não existe uma cadeira de arqueologia, de introdução à arqueologia, o que eu acho uma falha absurda. Fica aí o meu protesto logo no começo. Indignação. No começo do programa. Mas eu tive a sorte, ou o azar, de ter dois professores que eram arqueólogos de formação e não historiadores. Um era um professor de história antiga, que dava aula de Roma e de Grécia, e o outro era um professor de história da América pré-colombiana. E eles dois faziam muita questão sempre de deixar claro que a formação de historiador e de arqueólogo são formações muito diferentes. Eles deixavam bem claro que a gente não daria para arqueólogo de jeito nenhum. E eu tenho que confessar que realmente a arqueologia pra mim tem alguma coisa de mágico, porque os caras, eu tenho muita admiração, porque os caras olham pra um monte de pedra e eles falam, olha, aqui se fabricava cerveja, né? E eu olho pra aquele mesmo monte de pedra e eu falo, um monte de pedra, né? Eu sou incapaz. Então, feito esse disclaimer, eu quero avisar aos ouvintes que não esperem grandes explicações técnicas sobre como trabalham os arqueólogos nas descobertas a respeito da história da cerveja, porque eu não saberia dizer, mas tem muitas coisas sobre as quais a gente pode falar, sobre as descobertas arqueológicas e, enfim, sobre esse diálogo entre arqueologia e história para a história da cerveja.
Como a arqueologia ajuda na história da cerveja?
Sérgio: A arqueologia ajuda no conhecimento, na produção de conhecimento sobre a história da cerveja em dois grandes campos, a princípio. Primeiro, nas descobertas sobre as origens da cerveja. Ela nos remete aos primórdios das produções cervejeiras. Esse é o primeiro campo. E o segundo campo seria na recriação, que está diretamente relacionado com o primeiro, inclusive, mas não necessariamente, na recriação de receitas antigas. Eu digo não necessariamente porque essas receitas antigas não precisam ser necessariamente dos primórdios da cerveja. Essas receitas antigas podem ser da Idade Média ou até do século XIX, receitas mais recentes, que não precisam necessariamente ser receitas da Antiguidade. Então, nós temos esses dois grandes campos onde a arqueologia pode dar as cartas, né? Eu ia dizer dar uma mão, mas não é dar uma mão, ela pode dar as cartas na produção de conhecimento sobre a história da cerveja. O arqueólogo trabalhando mais ali em campo, com a cultura material, com a escavação e o historiador trabalhando mais na base do documento. A história é uma ciência muito completa, no sentido de que ela acaba se utilizando sempre da descoberta de outros campos de saber. Não tem como, dependendo do tema que você estuda, não tem como, por exemplo, a história dispensar o trabalho arqueológico. É o caso das origens da cerveja, por exemplo.
Como essas pessoas conseguem identificar que naqueles sítios arqueológicos tinham resquícios de alimentos fermentados? Pelo off-flavor?
Sérgio: Pois é, como é que se faz a mágica, né? Porque pra mim isso tem alguma coisa de mágico, né? O cara chegar num monte de pedras num sítio arqueológico e vai passando o pincelzinho ali, vai escavando, vai limpando e vai encontrando com a ajuda de… Enfim, da tecnologia mais avançada que se pode lançar à mão, vai achando informações que nos abastecem na hora de escrever a história da cerveja. Uma coisa que é comum nos sítios onde se produziu cerveja em algum momento é a descoberta de vestígios de oxalato de cálcio. O oxalato de cálcio seria aquilo que hoje a gente chama de pedra cervejeira. Quando você não lava, não faz uma pós-sanitização do seu material depois de várias brassagens, você que é homebrewer, que não é o nosso caso aqui, graças a Deus, porque aqui só tem pessoas normais. Então, vai se depositando ali esse oxalato de cálcio, que é considerado a assinatura da fermentação, a assinatura de que ali houve um processo de fermentação de alguma coisa. E uma outra assinatura são vestígios de amido, do uso de amido. Então, obviamente, também pela característica do sítio que se está escavando, o arqueólogo já imagina o que ele pode encontrar por ali. Então ele não é pego de surpresa. Quer dizer, muitas vezes acontece de ele ser pego de surpresa, mas muitas vezes, pela característica do sítio arqueológico, ele sabe o que procurar. Ele sabe o que ele deve procurar ali. Eu fazendo uma analogia com o trabalho do historiador, que talvez seja, que é mais próximo pra mim, talvez fique mais claro. O historiador, quando ele vai num arquivo e começa a trabalhar com uma massa documental de arquivos de papel, se ele não souber, se ele não tiver pelo menos uma vaga ideia daquilo que ele quer encontrar, ele vai se perder no meio daquela massa de informação e vai acabar não achando nada. Pode passar ali meses procurando e não vai achar nada. Então, o historiador, quando ele vai para o arquivo e decide investigar a documentação, ele já sabe mais ou menos o que ele quer achar. A mesma coisa o arqueólogo. Ele tem que saber… Exatamente, exatamente não, mas ele tem que ter uma ideia do que ele está procurando para que ele também não se perca com as informações do sítio arqueológico, para que ele saiba que tipo de método ou que tipo de tecnologia ele deveria usar naquele local.
Quais são os principais sítios arqueológicos?
Sérgio: Então, eu vou citar dois sítios arqueológicos que eu acho significativos, mas existem mais sítios arqueológicos. Tem um site, para quem tiver interesse, um site que eu descobri pouco tempo atrás, estudando propriamente para esse programa, que se chama Beery Studies. Nesse site, eles relacionam, enfim, tem textos longos, sobre, deixa eu contar aqui rapidamente, sobre sete sítios arqueológicos, todos da era… pré-era cristã, né, antes de Cristo, em continentes diversos. Mas, enfim, não era o caso da gente ficar aqui detalhando cada um desses sete sítios arqueológicos. Eu separei dois que eu acho significativos. O primeiro é, eu vou inverter um pouco a ordem e começar do mais recente, do mais antigo. O mais recente é o sítio de Ganj-i Dareh Tepe, no Irã, que foi descoberto em 1961. E que é datado mais ou menos um período de ocupação entre 5200 a.C. a 500 a.C. Por que eu estou começando por esse sítio? Porque durante muito tempo esse sítio foi considerado o sítio mais antigo com traços de produção de cerveja. O sítio de Ganj-i Dareh Tepe no Irã. O que era esse sítio? Esse sítio era um posto comercial avançado na Mesopotâmia. Ele ficava num cruzamento de rotas comerciais, então ele era um posto comercial. E ali foi encontrada uma grande quantidade de cerâmica variada. E nessa cerâmica foram encontrados vestígios de vinho e de cerveja, datados de aproximadamente 3.000 anos antes de Cristo. 3.100 a 2.900 anos antes de Cristo. Como era um sítio comercial, como era um posto comercial, então a gente já sabe que essa cerveja, provavelmente, estava sendo comercializada. Não era uma cerveja, não era uma bebida ritual, não era uma bebida ritualizada, mas era uma bebida feita para o comércio.
E tinha a chance de ser bebidas importadas, que vinham, transitavam ali e ia embora?
Sérgio: Sim, importadas na medida em que aquele posto comercial, na área que aquele posto comercial recobria, que era a Mesopotâmia. […] Uma outra descoberta interessante desse sítio arqueológico e desses vestígios encontrados nesse sítio arqueológico foi a utilização de cevada. Aquilo que eu estava falando para vocês antes, com o avançar do estudo do sítio arqueológico, é possível chegar a um detalhamento do tipo de cereal e do tipo de ingredientes utilizados na produção de cerveja. Esse foi o primeiro sítio. Aquilo que eu já falei, durante muito tempo foi considerado o mais antigo vestígio de produção de cerveja da história. Porém, a partir de 2018, essa datação caiu. Por quê? Porque foi encontrado um outro sítio arqueológico que se chama Caverna de Requefete, que fica em Israel, e foi descoberta em 2018. Essa caverna já é anterior ao processo de sedentarização. Então ela já é do período, ela é um sítio ocupado no período paleolítico. Caceta! Por caçadores e coletores, não era… Não é um posto comercial de uma civilização organizada com comércio, não. É tudo uma outra história. Eram caçadores-coletores que pertenciam à cultura natufiana. Essa cultura natufiana era a cultura justamente que fez a transição da caça-coleta, dos caçadores-coletores, para a sedentarização, para o processo de sedentarização.
O que a arqueologia pode nos ensinar sobre os aspectos do dia a dia da cerveja, os pontos sociais?
Sérgio: Acho interessante falar desses aspectos rituais porque muitas vezes quando a gente fala das origens da cerveja, fica parecendo que os homens pré-históricos encaravam a cerveja do mesmo jeito que a gente, que a gente bebia uma cerveja para se embebedar, para se divertir e para socializar. Tinha isso também, mas essas descobertas mostram como esse caráter ritual da cerveja era igualmente ou talvez até mais importante do que o caráter social. Porém, outras descobertas nos chamam a atenção para outros caráteres da cerveja. Por exemplo, as descobertas no Egito. A gente sabe hoje que o Egito foi a primeira civilização onde existiam estabelecimentos próprios para a produção de cerveja. A gente pode dizer que as cervejarias surgem no Egito, lugares próprios para a produção de cerveja, que não eram o bar nem eram a casa do cervejeiro, mas fábricas, plantas de produção, digamos assim. Da mesma forma, a arqueologia egípcia… Com a tradução de hieróglifos, é por meio dos estudos arqueológicos que se traduzem os hieróglifos, que se descobrem quais os hieróglifos que significam cerveja, seja na escrita egípcia, seja na escrita suméria, na escrita acádica. Oh meu Deus, esqueci o nome daquele alfabeto doido lá deles. Enfim. Tudo bem. É justamente a pesquisa arqueológica que nos permite identificar a palavra cerveja no meio dessa documentação. Quando a gente fala em documentação, é meio Flintstones. Esses caras escreviam nas paredes, eles escreviam em pedaços de pedra, em argila que eles botavam para secar no sol. Então, tudo isso é cultura material. Tudo isso é objeto de estudo do arqueólogo. Então é por meio da arqueologia que a gente descobre qual era o papel que a cerveja desempenhava nessa sociedade. Então é possível descobrir, por exemplo, os seus aspectos médicos. Um dos vestígios arqueológicos egípcios mais utilizados é justamente uma lista de medicamentos com cerca de 21 medicamentos, onde entravam também a cerveja. Se chama Papiro de Ebers, que remonta a 1550 a.C., que contém 700 fórmulas mágicas e remédios populares. Ou seja, fórmulas mágicas e remédios populares para o homem da antiguidade é a mesma coisa, tá? mostra que a cerveja, além de estar presente na mesa e nos rituais religiosos, também era usada como remédio. Por exemplo, se prescreve espuma da cerveja com cebola, como um delicioso remédio contra a morte. Esse remédio é muito bom mesmo, né? Considerando que o povo morria… Não, mas olha só, parando pra pensar, tá, gente? Considerando que o povo morria com gripe, e hoje… Tem aquelas pessoas que receitam, você tá gripado? Toma um chá de mel com alho, cebola, esquenta tudo junto e bebe, que vai te fazer bem. No dia seguinte você vai estar ótimo. Que é uma parada que, assim, eu já bebi, tá? Já fui nessa. É horrível, mas no dia seguinte você vai ter bem. Então, cara, olha só, começa a fazer sentido. É medicina natural, né? Medicina em cima da experimentação. Outros aspectos que podem ser descobertos a partir de estudos arqueológicos, nesse aspecto, por exemplo, como se armazenava os recipientes usados para armazenar a cerveja, formato, tamanho, capacidade, ocasiões, modo de serviço, como se servia, se existiam tavernas, se existiam espaços. próprios para isso, e outros aspectos mais cotidianos. Dando um pulinho do Egito até Roma, as escavações de Pompeia, por exemplo, as escavações recentes de Pompeia, descobriram bares, pubs, que era onde a população de Pompeia ia beber o seu vinho e fazer a sua noitada. Então, tudo isso é fruto de pesquisa arqueológica. A respeito do Egito, tem um último aspecto interessante, que é a descoberta, uma descoberta feita em 2018, que descobriu uma instalação para a produção de pão e cerveja para abastecer os trabalhadores que construíam a Pirâmide de Miquerinos.
Qual o papel da cerveja na sedentarização da humanidade?
Sérgio: Eu vou logo dizendo que eu sou do time do sofá. Eu acho que foi o sofá que chamou a cerveja. Mais pra frente eu vou deixar mais claro por quê. A gente já falou desse tema quando a gente falou naquele programa sobre mitos da história da cerveja. Se você não ouviu a minha participação… Já faço logo a propaganda. Se você não ouviu esse programa sobre mitos da história da cerveja com a participação de eu mesmo, corre lá e repita. Então a gente já falou um pouco, né? É justamente a partir dessas descobertas arqueológicas que se abre essa discussão sobre qual foi o papel da cerveja nessa sedentarização, nesse processo de sedentarização, e que acaba gerando duas posições que são contrárias, mas são duas hipóteses igualmente válidas. É importante lembrar aqui que nós estamos sempre no campo das hipóteses, porque até o momento, e dificilmente a gente vai achar algum tipo de… Documento de comprovação material que comprove cabalmente uma e não a outra. Então você tem a posição daqueles que acham que a sedentarização e o começo da produção do cultivo de cereais, ele se dá por N motivos, para uma maior disponibilidade de comida e também de cerveja, de bebida, etc. E que a produção de cerveja se desenvolve, se populariza e se torna uma coisa mais comum. após a sedentarização, após o estabelecimento das sociedades, das cidades, das sociedades, e a outra linha, que é justamente o contrário, que diz que a sedentarização e a domesticação de cereais se deu não para produzir pão, mas para produzir cerveja, pela importância que a cerveja já tinha anteriormente à sedentarização. Como a gente viu, que a cerveja já era importante para os povos nômades, para os povos caçadores e coletores. Então você tem esses dois elementos. Posicionamentos, né? Essas duas hipóteses. E que você não precisa, obviamente, optar nem por uma nem por outra, mas se quiser pode. Eu, por exemplo, sou da primeira opção, de que a cerveja se populariza após a sedentarização com a maior disponibilidade de cereais para a sua produção. E aí, nessa discussão, aí aparecem alguns personagens que talvez valha a pena a gente falar sobre, que são alguns personagens muito interessantes. Esse campo que defende que a sedentarização se deu por causa da cerveja, ele é defendido por alguns nomes. Entre eles, o professor Solomon Katz. que é professor do Departamento de Ortodontia da Universidade da Pensilvânia, que estudou arcadas dentárias, encontrou vestígios de cereais fermentados nas arcadas dentárias que ele estudou. Mas, veja bem, ele não é um arqueólogo, ele não é um historiador, ele é um, sei lá, dentista.
Que papo incrível, meus amigos e amigas!
Até a próxima,
Leia também: Cerveja e Religião com Sérgio Barra | Ep.145
O que bebemos durante o programa? Sérgio bebe Lager da Birra Moretti; Lud bebe água e Leandro bebe Patagonia Bohemian Pilsener.