Neste episódio da série Cada cerveja, uma história, Ludmyla Almeida, Henrique Boaventura e Gabriel Gurian mergulham na história de uma das cervejarias mais consequentes do mundo: a Pilsner Urquell. Do estopim provocado pela insatisfação de cidadãos e taberneiros com a qualidade do que era produzido até chegar a um novo padrão de excelência no mundo da cerveja, esse papo tá fascinante!
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Quando o povo se revolta com a cerveja ruim
Em 1838, na cidade tcheca de Pilsen, a população perdeu a paciência. As cervejas locais estavam azedas, intragáveis, e os cidadãos decidiram que não dava mais.
Em um gesto de pura indignação coletiva, 36 barris foram despejados no esgoto, em praça pública. Mal sabiam eles que esse protesto mudaria a história. E não ficou só nisso: todos se uniram para criar algo novo e melhor.


Nascia ali a Cervejaria dos Cidadãos (Bürgerbrauerei, em alemão; Měšťanský pivovar, em tcheco), a futura casa da Pilsner Urquell. O objetivo era simples, mas ousado: produzir uma cerveja limpa, clara e de qualidade estável, seguindo influências bávaras, num contraste com a imprevisibilidade que dominava as tabernas locais da época.
Para isso, eles contrataram o arquiteto Martin Stelzer, especialista em plantas industriais modernas, e trouxeram um cervejeiro bávaro nada simpático, Josef Groll, conhecido por, digamos, ser difícil de lidar. O próprio pai dele dizia que o filho era “um dos piores seres humanos da Baviera”. Mesmo assim, foi esse sujeito rabugento quem mudaria, para sempre, o mundo da cerveja!
O nascimento da lenda dourada
Com o novo prédio erguido no distrito de Bubenc, com boas fundações de arenito, ideais para as cavas de armazenamento a frio, e uma água incrivelmente mole e pura, Groll teve em mãos as ferramentas perfeitas.
Ele pôs em prática procedimentos e ingredientes já usuais na Baviera: utilizou maltes claros, secos com ar quente indireto, tecnologia inovadora trazida pela Revolução Industrial; trouxe leveduras de baixa fermentação. Tudo isso aliado à água e às condições locais. Como resultado, deu origem a uma cerveja dourada, límpida e brilhante, sem o defumado pesado que marcava as ales antigas.
Assim, no dia 11 de novembro de 1842, na Feira de São Martinho, essa nova cerveja foi servida ao público pela primeira vez. Todos foram surpreendidos com o resultado, do sabor à aparência. Era uma verdadeira reviravolta, se comparada à porcaria descartada em 1838.
A partir daí, essa “pale lager”, que depois ganharia a classificação de Pilsner Bier, começou, aos poucos, a circular para além das fronteiras tchecas. E, paulatinamente, inspirou as lagers que se desenvolveram depois.
Curiosamente, apesar do sucesso estrondoso, Josef Groll não durou muito no cargo. Entregou a “mãe das Pilsens” e foi dispensado em 1845, quando vencido o seu contrato, sem o interesse de renovação por parte da Cervejaria dos Cidadãos. Voltou então para a Baviera, herdou a cervejaria do pai e desapareceu do radar da história. Ainda assim, o estrago (no bom sentido) já estava feito!

O segredo técnico por trás da perfeição
Henrique Boaventura explica: o sucesso da Urquell não foi só sorte. Pelo contrário, ela combina cinco elementos fundamentais.
- Água de Pilsen: com menos de 10 ppm de minerais em sua composição, é extremamente leve e acentua o dulçor do malte sem gerar aspereza no amargor do lúpulo.
- Malte Pilsen: claro, suave, e sem defumado. Seco ao calor indireto e, em muitos casos, pelo método floor malted, no qual o piso é aquecido para garantir uniformidade.
- Lúpulo Saaz (Žatec): aroma floral e picante, amargor limpo e elegante. Adicionado em três estágios de fervura para equilibrar sabor e perfume.
- Levedura Lager: contrabandeada da Baviera, fermenta a baixas temperaturas, produzindo um líquido neutro e cristalino, sem os ésteres frutados das ales.
- Cristal da Boêmia: o toque final! Copos de cristal intensificavam o brilho da cerveja e ajudaram a consolidar o marketing da “cerveja mais pura e transparente do mundo”.
Assim, beber uma Pilsner Urquell virou uma experiência sensorial completa: a cerveja dourada reluzindo no copo, espuma densa, aroma delicado, refrescância incomparável. Desse modo, criou-se um padrão que moldou o consumo moderno.

VALE A LEITURA:
- Para quem tem curiosidade técnica sobre os caminhos biohistóricos percorridos pelas leveduras de baixa fermentação, recomendamos o excelente artigo A new hypothesis for the origin of the lager yeast Saccharomyces pastorianus (2023). Acesse aqui!
Da Boêmia para o mundo
O sucesso foi instantâneo. Outras cervejarias tchecas, como a Gambrinus, surgiram poucos anos depois, e o estilo se espalhou rapidamente pelo Império Austro-Húngaro. Graças à malha ferroviária e aos transportes fluviais, a partir dos anos 1850 barris de Pilsner chegavam a Viena, Paris, Berlim e além. Com o tempo, em 1873, a cerveja cruzou o Atlântico e chegou aos Estados Unidos, influenciando profundamente a indústria local, na cola de imigrantes germânicos.

Entretanto, a fama trouxe um problema: todo mundo queria reproduzir o estilo e chamar sua lager de “Pilsner”. Então, em 1859, o nome Pilsner Bier foi registrado junto à Câmara de Comércio de Pilsen. Décadas depois, nova medida precisou ser tomada, e, em 1898, surgiu oficialmente a marca Pilsner Urquell, “A Fonte de Pilsen”, em alemão – Plzensky Prazdroj, em tcheco –, para batizar o rótulo principal da Cervejaria dos Cidadãos.
No lançamento do novo rótulo, documentos da cervejaria declaram o “absurdo e a falta de lógica de se usar a palavra ‘Pilsner’ para cervejas produzidas em cidades fora de Pilsen”. Foi uma forma de proteger o berço e local primordial de produção, já era um apelo avant la lettre pela Denominação de Origem. Assim como o champanhe só pode vir de Champagne, a verdadeira Pilsner só pode vir de Pilsen!
Guerras, autoritarismos e conglomerados capitalistas
No século XX, a Pilsner Urquell experienciou de tudo: duas guerras mundiais, ocupação nazista, destruição de plantas por bombardeios, estatização sob o regime comunista e reestruturação capitalista nos anos 1990. Mesmo assim, manteve sua projeção de importância.
Em 1913, já produzia 1 milhão de hectolitros por ano, com representação comercial em 34 países. Fundiu-se com a Gambrinus em 1935, tornando-se a única e grande produtora de pilsners desde então. Depois vieram os conflitos e a montanha-russa.
Detalhe importante: o nome Pilsner Urquell só se tornou oficialmente o da cervejaria no pós-Segunda Guerra Mundial, na década de 1950!

Nessa toada, de altos e baixos, a companhia chegou ao fim do século XX produzindo mais de 4 milhões de hectolitros de cerveja por ano, exportando seus rótulos para quase 60 países. Foi assim que abriu seu capital na bolsa, em 1992, desestatizando-se de vez.
Posteriormente, em 1999, a cervejaria foi comprada pelo grupo sul-africano SAB (South African Breweries), que depois se fundiu à Miller. Em 2016, a gigante AB InBev adquiriu o conglomerado, mas, num plot twist, a Pilsner Urquell acabou nas mãos da Asahi, o grupo japonês que também é dono da Fuller’s.
Hoje, a Urquell segue produzida na cidade de origem, preservando tanques de madeira e processos tradicionais. Parte autêntica, parte marketing, mas totalmente simbólica.
Inclusive, existe lá o Pivovarské muzeum, o Museu da Cerveja Pilsner, que é ligado à Urquell, mas que se dedica a contar a história cervejeira da cidade e do seu mais famoso e influente produto. O que sublinha a indissociabilidade entre as histórias do estilo, do local e da empresa.

Entre mitos e copos de cristal
A influência da Pilsner Urquell vai muito além do sabor. Ela criou um novo ideal de beleza na cerveja: clara, cristalina, dourada e servida com espuma cremosa em copo de cristal. Além disso, seu impacto é tão profundo que o termo “pilsen” virou sinônimo de cerveja leve no mundo inteiro, até nas latinhas que encontramos em qualquer supermercado.
Mas por trás dessa estética está uma história de rebeldia, técnica e reinvenção. Afinal, foram cidadãos insatisfeitos que decidiram abolir a cerveja ruim e, sem saber, deram início à “revolução” que transformou o padrão global de qualidade que bebemos até hoje.
Conclusão — A revolução começa no copo
A Pilsner Urquell não é apenas uma cerveja. É um divisor de águas. Literalmente!
Ela mudou a forma de produzir, servir e enxergar a cerveja. Da Boêmia à sua geladeira, tudo o que chamamos hoje de lager, pilsen ou premium lager descende diretamente dessa criação de 1842.
Por isso, da água pura ao copo de cristal, a mãe de todas as pilsens segue viva, em sua forma “original” ou na sua dispersão e reinvenção pelo mundo. Lembrando que, às vezes, a revolução nasce quando alguém decide que cerveja ruim não dá mais! 🍻