Quando uma onda de Porter destruiu um bairro inteiro

Na tarde de 17 de outubro de 1814, uma tragédia sem precedentes chocou Londres. O que parecia uma cena de comédia absurda rapidamente se tornou uma catástrofe real: um “dilúvio” de mais de 610 mil litros de cerveja varreu as ruas de St. Giles, na região central da capital inglesa, deixando mortes, destruição e um marco na história industrial britânica.

A seguir, você vai conhecer um pouco mais da história da infame London Beer Flood, quem foram as vítimas e quais foram as consequências do desastre. Uma história que mistura cerveja, engenharia industrial e a combinação entre negligência humana e, como interpretaram os contemporâneos, intervenção dos Céus.

Dilúvio de Londres
Pub em Tottenham Court Road

O estopim do desastre

O episódio teve início na The Horse Shoe Brewery — ironicamente e “Cervejaria da Ferradura”, um icônico símbolo de sorte —, pertencente à Meux & Company e situada na esquina entre a Great Russell Street e Tottenham Court Road. À época, já estava em operação havia décadas e era uma das maiores de Londres, destacando-se na produção de Porter, uma cerveja escura bastante popular entre os londrinos do século XIX.

Horse Shoe Brewery
Mapa de Londres indicando a cervejaria entre Great Russell Street e Tottenham Court Road (1792-1799)

Naquele tempo, era comum fermentar cervejas em enormes tanques de madeira reforçados por anéis de ferro. O maior deles, com 22 pés de altura, isto é, quase 7 metros, continha litros e litros de Porter, o suficiente para servir uma pint, cerca de meio litro, de cerveja para mais de 1 milhão de pessoas.

No entanto, na tarde daquele fatídico dia, um dos anéis de ferro se rompeu. Surpreende o fato de que um técnico da fábrica notou o dano, mas, ao reportar para o superior, recebeu orientação para deixar ordens para um reparo posterior, sem grande preocupação, já que se tratava de uma ocorrência relativamente corriqueira. Acontece que o tanque estava cheio.

Entre às 17h30 e 18h, o recipiente cedeu completamente, liberando uma torrente de cerveja. A força da explosão foi tamanha que derrubou paredes da cervejaria e fez com que outras cubas também se rompessem, multiplicando o volume de líquido que transbordava da The Horse Shoe. Teve início, assim, o dilúvio!

Dilúvio - tanques

A “onda” de cerveja e seus efeitos devastadores

O bairro de St. Giles, no local conhecido como The Rookery, em que se situava a cervejaria, era um dos mais pobres de Londres, tendo moradias pequenas, amontoadas e frágeis. Além disso, não havia qualquer sistema de drenagem ou esgoto. Assim, quando a torrente de cerveja Porter invadiu o local, não teve para onde escoar a não ser porões das casas e outras áreas no subsolo. A destruição foi imensa e instantânea.

Casas desabaram, pessoas foram arrastadas, e ruas inteiras ficaram alagadas por uma mistura de lama e Porter. Estima-se que o fluxo inicial de cerveja atingiu quase 4 metros de altura. O pub Tavistock Arms foi severamente danificado, e vários moradores ficaram presos nos escombros.

“Uma imensa massa de ruínas… o cenário circundante de desolação apresenta uma aparência terrível e terrível, igual àquela que se supõe que um incêndio ou um terremoto possam causar” – The Morning Post, 1814.

Dilúvio - St. Giles
The Rookery, St. Giles’

As vítimas do “London Beer Flood”

Nesse incidente infeliz, além de dezenas de feridos, oito pessoas, todas mulheres ou crianças, perderam a vida. Entre elas, Mary Mulvey e seus dois filhos, Hannah e Thomas, que tomavam chá quando o dilúvio cervejeiro invadiu sua casa; Eleanor Cooper, uma jovem de 14 anos, funcionária do Tavistock Arms, que morreu soterrada; e quatro pessoas que, em um porão que foi alagado, participavam de um velório de uma criança, falecida na véspera.

Além das vítimas diretas do impacto da torrente de cerveja, há relatos de pessoas que, nos dias seguintes, adoeceram ao tentar beber cerveja do chão, ávidos por “aproveitar” a situação e  “não desperdiçar” a bebida. Dessa forma, o episódio deixou marcas físicas e psicológicas no bairro, o que perdurou por décadas.

Julgamento e consequências

Após o desastre, o caso da Meux & Company foi à Justiça. Entretanto, o tribunal classificou o incidente como um “Act of God”, ou seja, um evento imprevisível, sem culpa humana direta. Um “golpe divino”, tal qual o dilúvio bíblico.

Não obstante, os prejuízos foram enormes: £23 mil libras na época, equivalentes a mais de £1,2 milhão atualmente. Felizmente para a cervejaria, o governo permitiu que ela reavesse os impostos pagos pela produção perdida, o que evitou sua falência. Ainda assim, as marcas deixadas na comunidade foram irreparáveis.

O incidente também provocou mudanças na indústria. Gradualmente, os tanques de madeira foram substituídos por estruturas metálicas reforçadas, mais seguras e duráveis, além de sublinhar a necessidade de atenção constante a questões de segurança. O evento serviu ainda como um alerta para a necessidade de normas industriais mais rigorosas.

Dilúvio - Meux's Brewery
Meux’s Brewery, ainda em operação em 1830

O legado do “dilúvio de cerveja” londrino

O “London Beer Flood” se tornou um símbolo curioso da Revolução Industrial, período em que o avanço tecnológico muitas vezes ultrapassava os princípios da segurança. Além disso, ele revelou, ainda no século XIX, como as desigualdades sociais amplificam tragédias: enquanto alguns jornais da época tratavam o evento com humor, e havia até esquemas de visita às ruínas da cervejaria, mediante pagamento, as famílias pobres de St. Giles’ enfrentavam o luto e a ruína total.

Apesar do incidente, o bairro permaneceu em condições deploráveis. Sofreu com influxo populacional graças à imigração de irlandeses, sem qualquer respaldo em prol de sua infraestrutura. Era um ponto proliferador de doenças, aliás. Isso até as intervenções urbanas que demoliram as slums para a abertura e a reforma de ruas na região central de Londres em meados daquele século.

Hoje, a antiga The Horse Shoe Brewery não existe mais, tendo sido demolida em 1921. Um teatro atualmente ocupa o lugar, e uma placa comemorativa em Tottenham Court Road relembra o ocorrido. Para os amantes de cerveja e história, é um lembrete de que até os prazeres mais cotidianos podem carregar histórias surpreendentes e, às vezes, trágicas.

Curiosidades e cultura popular

Ao longo dos anos, o episódio inspirou canções, peças teatrais e até memes históricos. Nas redes sociais, o Beer Flood volta e meia surge em listas de “tragédias inusitadas” ou “acidentes mais estranhos do mundo”.

Mesmo que o humor moderno enxergue graça na imagem de uma “onda de cerveja”, o desastre ainda provoca reflexão. A história mostra o peso humano do episódio e reforça a importância da responsabilidade industrial e a valorização da vida em qualquer época.

Depois do dilúvio…

O London Beer Flood de 1814 é um lembrete vívido de que a história pode ser tão absurda quanto trágica. Em uma Londres marcada pela pobreza, pela desigualdade e pela industrialização acelerada, um acidente com tanques de Porter mostrou que, num coquetel de imprevistos e irresponsabilidade, até a cerveja pode se tornar uma força destrutiva. .

Hoje, ao levantarmos um copo, vale lembrar: cada gole carrega séculos de técnica, cultura e, às vezes, até de tragédias esquecidas. 🍻

Gabriel Gurian

Historiador, com Mestrado e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), meus estudos são pautados por bebidas e bebedores na história do Brasil, em diferentes períodos. Atualmente integro o projeto Comer História, desenvolvo pesquisa pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), com foco no nascimento da cultura cervejeira brasileira no século XIX, e colaboro com o Surra de Lúpulo.

Gostou deste conteúdo? Compartilhe com seus amigos.

Confira os últimos posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Cadastre-se na Hop-Pills

* indicates required