No primeiro programa Surra de Lúpulo de 2024, vamos falar sobre um assunto muito importante: a relação de neurodivergentes com o álcool. Como neurodivergentes lidam com substâncias que podem causar dependência? Quem nos acompanha nesse papo é a Érica Rocha, psicóloga, neuropsicóloga, mestra e doutoranda em psicobiologia. Ouça na íntegra:
Esse programa não aconteceria sem os nosso Mecenas Empresariais: Cerveja da Casa, Iris Pay, Cervejaria Uçá, Viveiro Van de Bergen, The Beer Agency, Prussia Bier e Passaporte Cervejeiro.
Conhecendo nossa convidada:
“Sempre me vi fazendo pesquisa e eu queria entender o cérebro humano. Era um negócio que me fascinava. Por que as pessoas se comportam do jeito que elas se comportam? Por que elas fazem o que elas fazem? Então, a faculdade inteira, a graduação, ela foi muito fantástica pra mim, mas eu nunca me vi clinicando. E eu paguei a minha língua em… todos os pontos que eu falei que eu não ia fazer. Assim, a graduação eu falei, não quero clínica. Começou clínica, eu falei, meu Deus, eu amo a clínica, bora pra clínica. Comecei a mestranda, falei, não quero dar aula. Comecei a dar aula, falei, meu Deus, amo dar aula. Ai, não, não quero fazer pesquisa. Amo fazer pesquisa. Então, é isso aí. Tudo que eu falo que eu não quero fazer, eu acabo fazendo. Então, eu fico imaginando o que mais que eu odeio fazer hoje, que um dia eu vou amar.”
Ao ser questionada sobre sua atual pesquisa, Érica Rocha diz que o foco de seu mestrado foi empatia e autismo, já seu doutorando é sobre aculturação e cognição social.
Neurodivergentes e o álcool
Na psicologia, chamamos de neurotípico tudo aquilo que não é neurodivergente. Podemos fazer uma comparação com cerveja, vamos chamar de água tudo o que não é outra bebida. Teremos água nas outras bebidas, inclusive nas cervejas, mas em concentrações diferentes. Com a neurodivergência, o mesmo ocorre. Temos transtornos que dão certas características para cada pessoa. É um espectro. No papo de hoje, estamos focando em neurodivergentes mais caracterizados por maior dificuldade com funções executivas.
“O impacto do álcool vai ser diferente para cada pessoa. Então, digamos o TDAH. Já pegamos o gancho do TDAH aqui. TDAH já tem uma impulsividade maior. Ele já tem uma desinibição maior. Ele já tem essa questão. Quando entra o álcool, o álcool faz exatamente o quê? Ele desinibida uma pessoa. Qualquer um que tenha tido experiência com álcool sabe que o álcool faz esse papel de desinibir o ser humano. Uma pessoa que já é desinibida, vai ficar mais desinibida ainda. E esse espírito de vamos lá fazer merda vai ficar muito exacerbado.
Tem um livro que eu li para preparar o podcast de hoje, que se chama Vencendo o TDAH, do Russell Barclay, que ele fala exatamente isso. Ele era adolescente, adolescente já não tem o cérebro preparado completamente, né? Já era TDAH, bebia com os amigos, que aliás é muito, muito comum todos os transtornos começarem o uso ou abuso de substâncias, inclusive e principalmente álcool, durante infância, acreditem, e adolescência. E aí ele simplesmente viu um carro. que tava com a chave na ignição e falou, vamos dar uma volta? Pegou o carro, foi dar uma volta. E, obviamente, isso deu muito errado pra ele. Mas aí vem, o quanto o papel do TDAH, talvez, naquele ponto ali, tivesse influenciado a vida dele. Não tô falando que foi só isso. Talvez, se ele tivesse só sido um cara bêbado, aleatório, ele tivesse feito a mesma coisa. Como nós sabemos que fazem. Mas, pra ele, era um pouco mais propenso.”
E pessoas com TAB?
“Pessoas com transtorno bipolar, que estão na mania. Então, eu faço tudo, eu sou incrível, eu consigo tudo, eu posso fazer o que eu quiser, eu gasto todo o dinheiro que eu tenho, eu vou beber tudo. Eu vou beber tudo, eu vou gastar tudo e ir no dia seguinte. Porque tudo tem consequência. Então, vai afetar as pessoas de maneiras diferentes, tanto pela consequência quanto pela forma como isso é processado no cérebro. Porque a gente tende a imaginar o cérebro muito particionado, mas na verdade ele é um todo, né? O álcool age de uma maneira íntegra no cérebro todo e o cérebro todo vai responder a isso. E se a gente tem transtornos que afetam o cérebro todo, ele vai agir no cérebro todo. E o álcool tem esse efeito depressor também, então ela vai dar uma pequena queda. Ela vai dar uma pequena queda, mas depois que passar o efeito do álcool, ela volta para a mania de novo. Então ela vai subir lá em cima de novo e vai voltar para o quilo que faltava. E o bipolar é interessante também porque ele pode usar para os dois lados. Ele vai usar muita bebida porque ele está muito feliz e festejando a mania dele. Ou ele vai usar muita bebida porque ele está muito deprimido e ele precisa esquecer as mágoas e afogar as mágoas e tudo isso. Também é uma relação complicada com o álcool.”
Como identificar a dependência?
“Existem escalas específicas do governo para isso. Mas a gente pode pensar em uma dose dependente. Eu conheço gente que todo dia toma uma dose de cachaça, mas é uma dose. Não existe dose segura de álcool, mas sabemos disso aqui, mas é uma dose. Agora, essa pessoa começou com essa cerveja transanal e todo dia ela toma uma taça. Todo dia ela toma… Aí ela começa a tomar duas, aí depois ela começa a tomar três, aí ela começa a comprar um barril pro final de semana, fazer churrasco. Aí ela começa a inventar desculpas sociais para ter bebida. Isso é muito comum. Desculpas sociais pra ter bebida.
Aí de novo, vale a pena as pessoas que estão ao redor prestarem atenção em quem se importa. Sim. Assim, olha, você está exagerando um pouco. Eu acho que você passou do limite. E aí a pessoa fala, não, imagina. Mas isso aqui é um churrasco. Tá, é um churrasco, mas você já tomou cinco taças de cerveja. Acho que já deu, né? Vamos parar? E aí você vai ver a reação da pessoa. Você também mudou o humor. Então, ela pode ter um humor muito… Uma reação muito ruim.”
Como tratar da dependência de pessoas neurodivergentes?
“Existem os protocolos que devem ser seguidos à risca; Funcionam muito bem. Por exemplo, as crianças que já sabem que têm transtorno de TDAH, desde a infância, que estão tratadas com um psicoestimulante, a tal da famosa Ritalina, elas têm um… Agora eu não vou me lembrar exatamente quantos por cento menos, mas é muito menos chance de desenvolver uma adicção por álcool. Muito menos mesmo. Então, qualquer pessoa com qualquer transtorno, ela precisa tratar o transtorno específico que ela tem mais o transtorno do álcool. E aí vão ser dois, dois separados. Mas eles funcionam, só que eles precisam andar em conjunto.”
Érica dá continuidade abordando casos de Transtorno de Ansiedade Social e TOC.
“O que eu queria falar do transtorno de ansiedade social e o transtorno obsessivo compulsivo. O transtorno de ansiedade social é aquilo, né? A pessoa não gosta de estar com pessoas, ela prefere não estar. Então, ela já chega muito tensa em um lugar. O álcool faz o quê? Nosso lindo lubrificante social. Perfeito. Pra dar merda, dois palitos. Sim. O transtorno obsessivo compulsivo também é visto como um transtorno de ansiedade. Porque a pessoa tem esses pensamentos intrusivos e ela precisa fazer esse comportamento. Então o álcool, num primeiro momento, ele alivia esses sintomas. Então ele funciona mais ou menos da mesma forma. Só que pro toque, ele vem pior depois. E pode gerar questões ainda piores pro toque. Porque, por exemplo, aquele dia que eu me senti tão bem… Eu tomei três doses de whisky. Então todo dia eu tenho que tomar três doses de whisky. Então, no primeiro momento, ajuda ele a se livrar daqueles pensamentos intrusivos e do comportamento obsessivo, da ansiedade que ele tem, assim como ajuda também a pessoa com ansiedade social dar uma baixada, só que quando o álcool passa, tudo isso volta à tona, né? O álcool não fica no nosso organismo pra sempre, então todos os nossos problemas voltam. É isso que as pessoas não se lembram.”
E sobre os mitos da neurodivergência?
“Acho que já tocamos em alguns mitos muito importantes que são, né, basicamente ninguém é normal. Não tem aquela frase de perto, ninguém é normal? Tem. Total. Acredite nela. Nunca conheci uma pessoa normal na minha vida e eu espero nunca conhecer, porque essa pessoa deve ser um saco. Sinceramente. Nenhum desses transtornos e nenhum transtorno mental é contagioso. Não se preocupem com isso. Não tenham preconceito com essas pessoas. Se vocês verem essas pessoas utilizando o álcool em si não é um problema para essa pessoa, ok. Ela sabe o que ela está fazendo, via de regra, tá? Vamos observar, mas com cautela também. Se ela chega assim dando uma voadora na pessoa e fala não, você não pode beber, calma. Vamos com calma. Pessoas com transtornos podem ter vidas saudáveis, vidas normais, podem beber, podem se divertir, podem se relacionar com pessoas fora do transtorno, e tá tudo bem.”
Gostaram desse bate papo incrível pra começar o ano? 🙂
Até a próxima, pessoal!
Fontes:
- ADHD in Adults and Comorbid Substance Use Disorder: Prevalence, Clinical Diagnostics and Integrated Therapy
- Alcohol, drugs, and attention-deficit/ hyperactivity disorder: a model for the study of addictions in youth
- Live fast, die young? A review on the developmental trajectories of ADHD across the lifespan – ScienceDirect
- Comorbidities in Youth with Bipolar Disorder: Clinical Features and Pharmacological Management – PMC
- Comorbidities in Youth with Bipolar Disorder: Clinical Features and Pharmacological Management – PMC
- Characterizing Alcohol-Related Neurodevelopmental Disorder (ARND): Prenatal Alcohol Exposure and the Spectrum of Outcomes – PMC
- Oppositional defiant disorder (ODD), the forerunner of alcohol dependence: a controlled study
- The Complex Relationship Between OCD and Alcohol
- OCD and Alcohol: Does Drinking Actually Make OCD Symptoms Worse?
- Ritalina: tudo o que você queria saber | Zenklub
- Uso recreativo de Ritalina por jovens soa alerta – Estadão
- Ritalina: bula, para que serve e como usar | CR
- Alcohol use disorders and ADHD
Escute também: Cerveja e Ciência com Nunca vi 1 cientista
Gostou do nosso bate papo? Seja um apoiador do Surra de Lúpulo clicando aqui.
O que bebemos durante o programa? Érica bebe Badem-Badem de Pêssego, Lud e Leandro bebem água.