Nas últimas semanas, com a chegada do Dia dos Pais, estive refletindo bastante. Para quem já não tem mais seu pai por perto, essa data pode ser difícil. Mas pode também ser uma ocasião para repensar nossos relacionamentos com as pessoas que amamos. E como meu pai foi, de forma indireta, um grande incentivador do meu amor pela cerveja, eu decidi trazer um pouco dessas reflexões para essa coluna, e falar sobre a relação entre nossos pais e a cerveja.
Meu pai e a cerveja 🍻
Para contextualizar, vale contar quem foi meu pai: David (ou Seu David, como todos o chamavam), ele foi muito austero e trabalhador. Neto de ucranianos e filho de colonos que se mudaram para Curitiba, cresceu em meio à cerveja feita em casa pela minha vó. Começou a trabalhar muito cedo, e sempre teve que trabalhar muito. Enquanto hoje, se fala em viver a vida todos os dias e não só nos finais de semana, na época do meu pai isso não existia. Os dias úteis eram para trabalhar. Às vezes, o fim de semana também. Mesmo assim, à sua maneira, Seu David foi um pai muito presente, dando total atenção à família e valorizando cada momento em que podíamos estar juntos.
Nesse contexto, por muitos anos da nossa vida, embora estivesse sempre presente, a cerveja não era sequer um coadjuvante. No máximo um figurante recorrente, aparecendo na forma de um ou dois copos antes do almoço de domingo. Mas havia alguns momentos em que ela mostrava seu potencial para o protagonismo.
Me recordo dos finais de semana em que ele se dedicava ao cuidado com o gramado. Era trabalho de um dia inteiro. No final da tarde de domingo, quando ele já havia cortado toda a grama – e eu e minha irmã havíamos rastelado e ensacado – sentávamos todos na varanda para descansar. Nesse momento, ele abria uma cerveja gelada para celebrar o resultado de um dia de trabalho duro. E ficávamos sentados lá, descansando e sentindo o cheiro da grama recém cortada. Essa lembrança me marcou por colocar a cerveja em um local de celebração. Era como ver meu pai sendo agraciado com uma medalha após uma grande conquista.
Nessa época – vale dizer, início dos anos 2000 – estávamos ainda falando somente de cerveja mainstream. Na verdade, não falávamos sobre isso. Cerveja sempre foi só “cerveja”. No máximo distinguíamos da cerveja da minha vó, referenciada como “caseira”. O resto, era tudo igual. Alguns anos depois, quando comecei a beber, meu critério de escolha ainda era quase unicamente o preço. E beber, um hábito puramente social. A cerveja estava sempre presente no encontro dos amigos, nos almoços de família, nos churrascos, mas não pensávamos muito sobre ela. E definitivamente, a bebida não era, em si, um fim. Mas um meio que unia e de certa forma facilitava as interações.
Muitos anos depois, já no início dos anos 2010, essa relação começou a mudar. Ao mesmo tempo em que meu pai já estava com uma condição que lhe permitia trabalhar menos, as cervejas artesanais começavam a fazer algum barulho no mercado, chamando a atenção de um grupo maior de consumidores além daqueles “early adopters”. Muitas pessoas começaram a acostumar o paladar com cervejas mais intensas, mais maltadas, alcoólicas ou amargas, e buscavam provar novos sabores. Nessa época, eu já morava em São Paulo, mas lembro de receber mensagens do meu pai com fotos de algum novo rótulo de cerveja ou bar que ele estava conhecendo. Na verdade, ele e minha mãe, que em determinado momento passaram a adotar uma rotina que até hoje me inspira: Toda quarta e sábado eles se propunham a sair para ir a algum bar que gostassem, ou conhecer novos bares e cervejarias. Essa virou uma rotina quase religiosa para eles, que eu acompanhava quando os visitava.
Lembro especialmente do nosso último final de semana juntos, pouco depois do seu aniversário, em outubro de 2019. Fomos ao que havia sido um dos seus bares favoritos em Curitiba, mas que havia sido vendido há pouco tempo. Nesse dia, lembro exatamente de onde sentamos, de ele ter tomado um de seus estilos favoritos (uma Red Ale), e de eu explicar a ele o significado do novo nome do bar, Blackbird. Me recordo também que apesar de ele já estar bastante doente nessa época, era visível sua alegria por estar com as pessoas que mais amava, em um local onde se sentia bem e bebendo uma boa cerveja.
Nessa época, eu já gostava muito de cervejas artesanais, e havia herdado o hábito de sempre procurar novidades, mas ainda não havia estudado muito sobre o assunto. E foi nesse último final de semana que eu decidi aprender sobre cerveja, como forma de aprofundar uma paixão que compartilhava com meu pai. Uma semana depois ele partiu, e um mês depois, eu fazia meu primeiro curso relacionado a cerveja, o de produção caseira.
Depois disso, vieram o Curso Avançado em Tecnologia Cervejeira, a formação de Sommelier, vários cursos complementares e até uma segunda graduação, em Produção Cervejeira. Até hoje, sempre que produzo uma cerveja, penso em como gostaria que meu pai pudesse prová-la, ou como eu gostaria de mandar uma mensagem para ele quando conheço uma cervejaria nova. Assim como ele fazia. Hoje sigo fazendo tours e viagens cervejeiras com minha mãe e minha esposa, e quero um dia fazer o mesmo com meus filhos. É interessante perceber que, apesar do pessimismo que permeia a letra da música eternizada por Elis Regina, Belchior tinha razão: Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.
Fazer esse exercício, de pensar sobre a influência dos nossos pais em aspectos importantes da nossa vida, é algo muito positivo para entendermos melhor nossas ações, motivações e emoções. Longe de querer fazer um reducionismo pseudo-freudiano, tentei aqui trazer algumas das minhas conclusões sobre como o meu pai influenciou positivamente a minha relação com a cerveja. Proponho que cada um que estiver lendo esse artigo faça a mesma reflexão. Aliás, há dois episódios do Surro de Lúpulo que abordam esse tema e que eu indico aqui:
Por fim, preciso reconhecer que o tema desse artigo pode ser sensível para algumas pessoas. Eu sei que tive muita sorte por ter tido um pai presente e com uma relação saudável com a bebida.
Para aqueles com históricos de abuso de álcool na família, para todos que também não puderam estar ao lado dos seus pais no dia de ontem, ou que não tiveram um pai presente em suas vidas, eu deixo um abraço carinhoso, e proponho um brinde: Que possamos superar as perdas e recomeçar. Que possamos ver o valor da vida e das pessoas que amamos, enquanto elas estão conosco. E que ao longo dessa jornada, nunca nos falte uma boa cerveja no copo, e razões para celebrar.
Saúde!
p.s: Agradeço à amiga Madu Vitorino, que há exatamente um ano me incentivou a contar essa história, e indiretamente contribuiu para essa coluna existir.
p.s2: Sim, minha vó é “homebrewer”. Ela e várias outras avós de ascendência ucraniana e polonesa, que cada uma com sua receita, fazem a cerveja que será consumida nos almoços de família. Nada de panelas elétricas e fermentadores em kegerators. O mosto é feito em uma panela no fogão de casa, resfriado, e depois fermentado em garrafas pet em um canto escuro do paiol. Também não existe medição da FG por densímetro ou refratômetro: a cerveja estará pronta quando a garrafa ficar bem estufada.