No programa de hoje, vamos seguir a série documental na qual falaremos de situações e personalidades históricas que marcaram o universo da cerveja. Essa série contou com a colaboração do Sérgio Barra (sommelier e historiador), que foi responsável por toda pesquisa para o tema selecionado. E neste episódio falaremos sobre a polêmica Lei da Pureza Alemã.

Ouça o episódio na íntegra:

 

Era uma vez, a lei da pureza Alemã

 

documento sobre lei da pureza alemã

A Reinheitsgebot, frequentemente traduzida como Lei Alemã de Pureza da Cerveja foi decretada em 23 de abril de 1516 pelo Duque Guilherme IV da Baviera. Esse é um daqueles tópicos obrigatórios em qualquer curso, palestra ou aula sobre a História da Cerveja, onde afirmações sem muita fundamentação documental se cristalizaram em verdades devido à falta de pesquisa histórica.

As interpretações mais repetidas a respeito da Reinheitsgebot afirmam que ela teria sido a primeira, ou a mais antiga lei de segurança alimentar da história. E levanta várias hipóteses a respeito do estabelecimento de dois dos três ingredientes que ela determina como obrigatórios para a produção de cerveja: a cevada e o lúpulo. Como, por exemplo, que a obrigatoriedade do uso de cevada seria resultado de uma escassez de trigo na Baviera no início do século XVI. Porém, muitas dessas hipóteses extrapolam o breve texto da lei. Que, analisado no seu todo, evidencia seu real caráter econômico.

Outros mal-entendidos muito comuns a respeito da Reinheitsgebot a tratam como se, desde o seu início se aplicasse a todo o território alemão e não apenas na Baviera. E isso é dito em um momento histórico em que a Alemanha, como Estado Nacional unificado, ainda nem existia. Por outro lado, curiosa e contraditoriamente, é possível encontrar também interpretações que afirmam que a lei se aplicava à toda Alemanha com exceção da Baviera. Devido ao fato de que nunca se deixou de fazer cerveja com trigo na Baviera (as famosas weissbier). O que seria ainda mais improvável.  

 

Contextualizando…

vista lindíssima de conto de fadas
Museu dos Reis de Baviera, do viagemalemanha.com

Na época da promulgação da lei, no início do século XVI, a Alemanha ainda não existia como um Estado Nacional unificado. Algo que só vai acontecer na segunda metade do século XIX. O território da atual Alemanha era formado por diversos reinos e cidades livres que compunham o Sacro Império Romano Germânico, que durou de 962 a 1806. Ao Sul localizava-se o ducado da Baviera, que existia ainda antes da formação do Sacro-Império, que eram de domínios das antigas tribos germânicas da era pré-cristã.

O Ducado da Baviera com a constituição territorial que que corresponde ao atual estado da Baviera, se forma no século X (907). E foi governado pela Casa de Wittelsbach entre 1180 e 1806. Quando, então, é elevado ao Reino da Baviera em um acordo entre Maximiliano IV José (1756-1825) e Napoleão Bonaparte (1769-1821). O Reino continuou sendo governado pela Casa de Wittelsbach até a sua dissolução, em 1918 e sua integração à República de Weimar.

Guilherme IV (13 de novembro de 1495 – 7 de março de 1550) sobe ao trono em 1508 em sucessão ao seu pai Alberto IV (1447-1508). E ele governou o Ducado da Baviera até 1545 tendo o seu irmão mais novo, Luís X (1495-1545), como co-regente. 

 

A Lei da pureza Alemã e suas interpretações

 

Guilherme IV foi um monarca de grande atividade no campo cultural, sendo importante colecionador e comissário de arte. Encomendou um importante conjunto de pinturas a vários artistas e ordenou a reforma do Palácio de Dachau, de uma ruína gótica em um palácio de quatro alas em estilo renascentista. 

Mas o seu feito mais relevante parece ter sido, de fato, o decreto da Lei de Pureza da Cerveja.  Apresentado em 23 de abril de 1516, perante um comitê composto por nobres e cavaleiros na cidade. A lei fixava preços para a comercialização da cerveja e determinava que, a partir daquele momento, os únicos ingredientes que deveriam ser utilizados para fabricação da cerveja deveriam ser lúpulo, malte de cevada e água. Vale uma observação aqui, a ação da levedura na fermentação alcoólica só vai ser descoberta pela ciência apenas em 1835 por isso ela não é citada aqui.

 

O texto integral é o seguinte:

Guilherme IV, Duque da Baviera
Guilherme IV, Duque da Baviera

 Proclamamos com este decreto, por Autoridade de nossa Província, que no Ducado da Baviera, tanto no país como nas cidades e nos mercados, as seguintes regras se aplicam à venda da cerveja:

Do dia de São Miguel (29 de Setembro) ao dia de São Jorge (23 de abril), o preço para um mass [antiga unidade de medida austro-bávara que equivale a 1,069l] ou um kopf [recipiente em forma de tigela, utilizado para líquidos], não pode exceder o valor do pfennig de Munique.

Do dia de São Jorge (23 de Abril) ao dia de São Miguel (29 de setembro), o mass não será vendido por mais de dois pfennig do mesmo valor, e o kopf por não mais de três Heller (Heller geralmente é meio pfennig).

Se isto não for cumprido, a punição indicada abaixo será administrada.

Se qualquer cervejeiro fermentar ou tiver outra cerveja, que não a cerveja do verão, não deve vendê-la por mais de um pfennig por mass.

Além disso, nós desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes usados para fabricação da cerveja devem ser cevada, lúpulo e água. Qualquer um que negligenciar, desrespeitar ou transgredir estas determinações, será punido pelas autoridades da corte que confiscarão tais barris de cerveja, sem falta.

Se, entretanto, um comerciante no campo, na cidade ou nos mercados comprar dois ou três barris da cerveja (que contém 60 mass) para revendê-los ao camponês comum, apenas para este será permitido acrescentar mais um Heller por kopf, do que o mencionado acima. Além disso, caso aconteça escassez e subsequente aumento do preço da cevada (considerando também que os tempos da colheita diferem, devido à localização das plantações).

Nós, o Ducado da Baviera, teremos o direito de fazer apreensões para o bem de todos os interessados.

Guilherme IV, Duque da Baviera

 

Várias motivações parecem ter concorrido para a promulgação da lei. Apesar de ser geralmente interpretada como uma das mais antigas leis de segurança alimentar da Europa, a principal preocupação da lei parece ser de ordem econômica e não sanitária. São estabelecidos preços máximos para a venda de diferentes medidas de cerveja de acordo com o período do ano.

De Setembro a Abril, ou seja nos meses frios, a cerveja seria mais barata: um mass ou um kopf deveriam custar no máximo um pfenning. Enquanto nos meses quentes, de abril a setembro, a bebida aumentava de preço: um mass podendo chegar a dois pfenning e um kopf a um pfenning e meio. Se o comerciante estivesse vendendo cerveja que não fosse aquela produzida no verão, deveria vendê-la mais barata. Além disso, estabelecia uma punição para quem descumprisse o estabelecido: 

 

“Qualquer um que negligenciar, desrespeitar ou transgredir estas determinações, será punido pelas autoridades da corte que confiscarão tais barris de cerveja, sem falta”.

 

A única parte da lei que parece interessar aos autores que se ocupam da história da cerveja, que é a preocupação com a determinação dos ingredientes obrigatórios da bebida, se reduz a apenas uma frase: “Além disso, nós desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes usados para fabricação da cerveja devem ser cevada, lúpulo e água.”  

Como falamos mais no começo e que vamos chamar atenção novamente é a ausência da levedura. Cuja ação na fermentação alcoólica só viria a ser descoberta pela ciência em 1835. Apenas no início do século XX, foi incluído o quarto elemento. Na mesma ocasião, o termo “cevada” foi substituído por “malte”. 

Na bibliografia cervejeira essa lei é frequentemente interpretada como a primeira, uma das primeiras ou a mais antiga lei de segurança alimentar da história. Porém, o próprio imperador Frederico I (conhecido como Frederico Barbarossa) pode ter sido o autor da primeira regulamentação da cerveja conhecida na Alemanha.

Frederico I, no Justitia Civitatis Augustensis, código de leis da cidade de Augsburgo, de 1156, decretou “o cervejeiro que fizer cerveja ruim ou servir medida injusta será punido; sua cerveja será destruída ou distribuída gratuitamente entre os pobres”. 

Noutra ocasião, agora em 1447 o Conselho Municipal de Munique recomendou às cervejarias da cidade a usar nas suas receitas apenas água, cevada e lúpulo. Quarenta anos depois (em 30 de novembro de 1487) o duque Alberto IV, pai de Guilherme IV, transformou a recomendação do Conselho Municipal em obrigação, dando origem ao primeiro edito de pureza da cerveja. Fica claro então, que a lei de 1516, nada mais fez do que estender essa obrigatoriedade a todo o Ducado da Baviera.

Assize of Bread and Ale
Assize of Bread and Ale

Encontramos exemplos anteriores também fora do Sacro Império Romano Germânico. Em 1267, Henrique III (1207-1272), da Grã-Bretanha, introduziu o Assize of Bread and Ale que estabelecia um rígido controle dos ingredientes e dos preços do pão e da cerveja. E essa lei parece remeter a outras ainda mais antigas, do reinado de Henrique II (1154-1189).

Diante disso tudo, não se pode afirmar que a Reinheitsgebot foi a primeira lei a regular a utilização de ingredientes da cerveja. E, se levarmos em consideração as suas alterações posteriores, também não poderíamos afirmar que é a mais antiga. 

 

Mas de onde veio então a afirmação que a Lei de Pureza tinha por objetivo primário a segurança alimentar? 

 

Essa tese é defendida por Horst Dornbusch, no seu livro Prost! A História da cerveja alemã, considerada uma obra de referência sobre o assunto. O autor procura nos convencer de que a qualidade da cerveja na Baviera passava por uma perda constante de qualidade na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, devido ao uso de ingredientes controversos na sua composição: 

 

“Embora o lúpulo fosse conhecido como aromatizante de cerveja desde o século VIII ou IX, inúmeras ervas, como cominho ou zimbro, até mesmo sal, caroço, fuligem, giz ou ovos cozidos eram usadas para “melhorar” o sabor da cerveja ou para encobrir sabores estranhos.”

 

Em Munique, em 1363, a própria Câmara Municipal tomou a si a tarefa de fiscalizar a produção de cerveja e em 1372 restavam apenas 21 cervejeiros na cidade. Porém, ainda que a preocupação com a qualidade da cerveja fosse uma preocupação constante das autoridades bávaras, isso não significa necessariamente que o escopo da lei de 1516 fosse esse. Os exemplos citados pelo autor não dizem nada sobre a Lei de 1516.

A recomendação da cevada e a consequente interdição do uso do trigo é usualmente explicada por uma possível escassez de trigo que, a partir de então, ficaria reservado para a produção de pão. Essa afirmação que pode ser encontrada em Dornbusch

 

“Além disso, havia escassez frequente de trigo na Baviera medieval, e os duques, bem familiarizados com os hábitos gustativos dos seus súbditos, temiam que os bons bávaros preferiram renunciar ao pão de cada dia do que não tomarem a sua bebida diária.”

 

Porém, essa afirmação não vem acompanhada de documento que a comprove. Se fosse realmente o caso de más colheitas, a lei deveria ser revista a cada safra, fato que nunca aconteceu.

Realeza Bavariana

Junto a isso, sabemos que as tradicionais cervejas de trigo (weissbier), uma especialidade da Baviera, nunca deixaram de ser produzidas. Porém a sua produção parece ser um privilégio da Casa Real da Baviera. Outros nobres e monastérios só poderiam produzi-las com licença concedida pelos Duques.

Para citar alguns casos, em 1520, o Barão Hans VI da casa de Degenberg recebe esse privilégio em caráter exclusivo e perpétuo de produzir as cervejas de trigo. Em 1567, o Duque Alberto V (1550-1579) tentou revogar esse privilégio, porém sem sucesso. Já em 1602, o último barão de Degenberg, Hans Sigmund, morre sem deixar herdeiros e o privilégio retorna para as mãos do Duque Maximilian I de Wittelsbach (1597-1623), bisneto de Guilherme IV.

Mais uma vez aqui o que parece prevalecer são os interesses econômicos dos Duques da Baviera, na preservação do seu monopólio de produção de cervejas de trigo, e não qualquer preocupação com a qualidade da cevada ou a falta de trigo.

Monopólio bom é monopólio que dura, né? (contém ironia). Esse monopólio durou cerca de 200 anos, até 1798, quando vários mosteiros e cervejarias burguesas receberam permissão para fabricar weissbier de forma não exclusiva. Época que o consumo de cervejas de trigo estava em declínio. Em 1872, o Duque Ludwig II (1864-1886) concedeu a um cervejeiro chamado Georg Schneider não apenas a permissão para produção, mas também o aluguel do estabelecimento estatal dedicado à fabricação desse tipo de cervejas em Munique (a Weisses Brauhaus). Dando fim de forma definitiva ao monopólio da casa reinante.

O mesmo se dá com a obrigação do uso do lúpulo. O uso do lúpulo na produção de cerveja era conhecido desde, pelo menos, o século VIII. Mas, a conclusão da transição completa do uso do gruit para o lúpulo demorou séculos.

No território do Sacro Império Romano Germânico foi no Norte que o seu uso ganhou força, entre os séculos XII e XIII. Época da publicação do livro da monja beneditina Hildegard Von Bingen (1098-1179), Livro das sutilezas das várias naturezas da criação (escrito entre 1151 e 1158) onde ela descreve o uso do lúpulo na cerveja por suas propriedades conservantes.

O que pouco se sabe e fala é que o gruit era taxado e utilizado pela igreja como fonte de renda. Os primeiros documentos conhecidos que concederam aos mosteiros o monopólio do uso do gruit datam do século IX. 

Mosteiros, bispos e outros titulares dos direitos dessa mistura foram autorizados a conceder o usufruto também a outros produtores, mediante o pagamento de uma taxa. A compra e venda dos direitos do gruit efetivamente se transformou em uma espécie de imposto indireto sobre a cerveja, gerando uma renda significativa para a Igreja.

Dessa forma, a Igreja Católica tinha o controle sobre a mistura de ervas que, durante 700 anos, constituiu um dos ingredientes amargos essenciais para se produzir cerveja. Por outro lado, não havia impostos a pagar ao Papa pelo lúpulo, nem mesmo em regiões controladas por católicos. A Reinheitsgebot, ao determinar o uso do lúpulo como um dos três ingredientes obrigatórios da cerveja, ajuda os cervejeiros bávaros economizarem o dinheiro dos impostos da Igreja sobre o uso do gruit

Em 1517, o lúpulo ganha um aliado inusitado: os cervejeiros de Wittemberg que haviam aderido à Reforma Protestante de Martinho Lutero. Wittemberg, cidade onde Lutero concluiu seus estudos de teologia e se tornou professor na Universidade local, era a capital da cerveja na região da Saxônia, com cerca de 150 cervejarias no início do século XVI. Para os luteranos, o uso do lúpulo era um ato de rebelião contra a Igreja Católica. Assim, a transição do gruit para o lúpulo também se apresentava como uma opção econômica, política e religiosa. 

 

As evoluções da Reinheitsgebot

 

Reinheitsgebot
Reinheitsgebot

Apenas em 1906, a Reinheitsgebot foi estendida a todo o Império Alemão (1871-1918). Na mesma ocasião, o termo “cevada” foi substituído por “malte” e foi incluído o quarto ingrediente obrigatório da cerveja: a levedura. Por esse motivo, seria um erro cronológico referir-se à Lei Alemã de Pureza de 1516, já que a que sua atualização é muito mais recente. Vale dizer que esse termo é facilmente encontrado em muitos rótulos de cervejas alemãs hoje em dia, geralmente, como forma de atestado da qualidade da cerveja.

Com a queda do Império, após a I Guerra Mundial, o Estado Livre da Baviera condicionou a sua adesão à República de Weimar (1919-1933) à adoção da Reinheitsgebot em todo o país. É apenas nesse momento que a lei vai ganhar esse nome.

Esse termo foi cunhado por um membro do Parlamento do Estado da Baviera, Hans Rauch, durante um debate acalorado sobre a tributação da cerveja. Antes disso, a lei era simplesmente conhecida pelo nome de “Surrotverbot”. Em tradução livre seria algo como “proibição dos substitutos, ou dos adjuntos”.

No seu original, a lei não contém a palavra “pureza” ou qualquer expressão que indique que a cerveja produzida com os três ingredientes obrigatórios era mais “pura”. Da mesma forma que não afirma que cervejas feitas com outros adjuntos seriam “menos puras” ou “impuras”. A ignorância desse fato pode levar a interpretações equivocadas sobre os objetivos iniciais da lei. A Baviera voltou a fazer a mesma exigência de aplicação da Reinheitsgebot quando aderiu à atual República Federal Alemã em 1949, depois da II Guerra Mundial. 

Existem hoje duas Leis de Pureza da cerveja: a da Baviera e a da Alemanha. Embora a versão bávara ainda restrinja o uso de qualquer coisa que não seja malte de cevada, lúpulo, água e levedura para todas as cervejas de baixa fermentação(lager), ela permite o uso adicional de malte de trigo ou centeio, por exemplo, apenas em cervejas de alta fermentação (ale) .

A versão alemã, por outro lado, é um pouco mais tolerante quando se trata de cervejas de baixa fermentação. Admitindo a adição de açúcar de cana, de beterraba, de amido modificado, açúcar invertido, bem como corantes feitos a partir desses açúcares. No norte da Alemanha, o uso de substitutos do malte como arroz, amido verde e amido de batata era não apenas permitido, mas até mesmo protegido pela Lei Imperial Alemã de 1873. 

Os cervejeiros alemães que não cumprissem a lei poderiam vender as suas bebidas, mas não poderiam denominá-las de “cerveja”. Em 1987, o Tribunal Europeu considerou a Reinheitsgebot uma restrição inadmissível ao mercado comum europeu recentemente integrado, que impedia que cervejarias de outros países vendessem suas cervejas não-Reinheitsgebot na Alemanha. Da mesma forma, os cervejeiros alemães foram autorizados a ignorar as restrições da Reinheitsgebot ao produzir cervejas para exportação, sem prejuízo do seu produto ser denominado cerveja.

 

Conclusão

 

Oktoberfest

Depois dessa viagem histórica podemos enxergar a Reinheitsgebot como um fato histórico que não pode ser analisado separadamente das suas diversas interpretações. O texto da lei é sucinto e dá margens para que os autores busquem diferentes explicações: seja para as suas motivações principais, seja para a escolha dos ingredientes que ela torna obrigatórios na produção de cerveja.

O maior problema em grande parte dessas interpretações é decorrente do fato dos autores que se ocupam exclusivamente da história da cerveja não analisarem a lei no seu todo. Prestando atenção a apenas uma frase. Aquela que determina os ingredientes obrigatórios da cerveja e que, segundo eles, seria a mais importante.

Hoje em dia persiste a polêmica em torno dos efeitos da Reinheitsgebot sobre a formação da Escola Cervejeira Alemã (ou Germânica). De um lado estão aqueles que defendem que a restrição das matérias-primas exigiu uma maior criatividade dos cervejeiros alemães. E que, assim, muitos estilos teriam nascido dessa necessidade de adaptação das receitas às limitações impostas pela lei. De outro lado, estão aqueles que defendem que a lei trouxe mais malefícios do que benefícios ao restringir o uso de matérias-primas.

De acordo com Garret Oliver:

 

“Pode-se argumentar que a Reinheitsgebot reprimiu a criatividade, ao banir muitos ingredientes interessantes, mas seu caráter conservador, ao mesmo tempo, poupou os consumidores alemães dos estragos causados às cervejas americanas desde o fim da Lei Seca”. 

 

Porém, essa discussão deixa de fora alguns aspectos importantes:

Primeiro – o fato de que a Reinheitsgebot não pode ter tido um impacto real na produção de cerveja fora da Baviera, como ficou indicado acima. Pelo menos, até o início do século XX.

Segundo lugar, faltam pesquisas mais detalhadas que mostram qual foi o nível de aplicação efetiva da lei. Em que medida ela foi respeitada, e em que medida os cervejeiros buscavam escapar da sua aplicação.

Até o momento, o que se pode afirmar com alguma certeza é que a Reinheitsgebot pode ter sido a responsável pelo desaparecimento de um estilo de cerveja muito comum na Baviera medieval: o Roggenbier.  Esse estilo era produzido com, pelo menos, 30% de malte de centeio (significado de roggen, em alemão). É comum encontrar textos que atribuem o seu desaparecimento à uma escassez de centeio. Que, então, teria ficado reservado para a produção de pão. Exatamente a mesma explicação que comumente se utiliza para justificar a proibição do uso do trigo na Reinheitsgebot. O que só mostra que essa é somente mais uma daquelas “explicações fáceis” que não têm qualquer embasamento documental, e que são aplicadas a vários contextos diferentes.

Por isso mesmo, devem ser vistas com desconfiança por parte do leitor atento e curioso.

 

🍻 tim-tim e até a próxima 🍻

 

🔎 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • DORNBUSCH, Horst. Bavaria. in: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 181-187.
  • DORNBUSCH, Horst. Prost! The story of german beer. Brewers Publications, Colorado, 1997.
  • DORNBUSCH, Horst; HEYSE, Karl-Ulrich. Reinheitsgebot. in: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 896-897.
  • DORNBUSCH, Horst; OLIVER, Garret. Weissbier. in: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 1063-1066.
  • OLIVER, Garret. History of beer. in: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 589-595.
  • OLIVER, Garret. A tradição boêmio-germânica da cerveja lager. in: OLIVER, Garret. A mesa do mestre-cervejeiro: descobrindo os prazeres das cervejas e das comidas verdadeiras. São Paulo: Editora Senac, 2012, p. 346-412.

 

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Nana Ottoni

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