Um brinde ao que quase acabou

No 12º episódio da série “Cada cerveja, uma história”, Ludmyla Almeida, Henrique Boaventura e Gabriel Gurian mergulham na trajetória da Hoegaarden — não só como marca, mas como guardiã do estilo Witbier. Nessa série, a cervejaria é um caso raro: pois se trata de uma relativamente jovem, nascida no século XX, e que, ainda por cima, resgatou um estilo medieval e o recolocou no mapa, ao ponto de virar referência de guia de estilos e vitrine de prateleiras mundo afora.

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Antes da marca, o lugar e o estilo

A vila belga de Hoegaarden carrega tradição cervejeira há séculos! Na verdade, na primeira metade dos 1700, por exemplo, ela já acumulava dezenas de pequenas cervejarias, que eram abastecidas por uma rede local de insumos, incluindo diversas maltarias próprias. Desse modo, ali floresceu o tipo de cerveja que em holandês foi chamado de “Witbier” e em francês de “Bière Blanche”. Isto é, “cerveja branca”; não porque tem trigo, tal qual uma Weissbier alemã, mas sim por ser pálida e turva para os padrões da época.

O que fazia a “brancura”

  • Maltes mais claros (secagem ao vento, sem fogo direto) resultavam em cervejas pálidas.
  • Além disso, trigo e aveia traziam alta carga proteica, deixando o líquido opalescente.
  • Em sua origem, muitas fermentavam espontaneamente em madeira e eram servidas fresquíssimas: recomendava-se beber em até 1 semana no verão (2 no inverno) para não azedar demais.

O tempero da história

Já entre os séculos XVI–XVIII surge a assinatura sensorial: semente de coentro (não a folha!) e casca de laranja de Curaçao, eco das conexões comerciais dos Países Baixos. Com isso, o resultado clássico é cítrico, picantezinho (fenólicos “pimenta/cravo”), leve e efervescente.

1957–1966: o “quase fim” e o renascimento por Pierre Celis

Em 1957, fechou a última cervejaria de Hoegaarden que ainda fazia a “branca”: a Brouwerij Tomsin. O estilo, pressionado pela ascensão das lagers, sumia.

Tomsin
“O antigo salão de degustação da cervejaria Tomsin, em Hoegaarden, foi transferido em 1957 para o Paenhuys de Bokrijk.”

Entretanto, nove anos depois, Pierre Celis — que crescera vizinho da antiga fábrica e aprendera o ofício por dentro — pegou empréstimo do pai, comprou equipamentos de uma cervejaria fechada na cidade vizinha de Heusden-Zolder e recriou, como pôde, a Witbier com base na experiência que teve na Tomsin e em depoimentos de moradores locais, que se lembravam da aparência e do sabor da cerveja.

Assim, nascia sua cervejaria, que logo adotaria referências monásticas no nome (“De Kluis”, “o claustro/cofre”) e, mais tarde, assumiria de vez o rótulo que a celebrizou: Hoegaarden.

Pierre Celis - Hoegaarden

O “pulo do gato” de Celis

Com o passar do tempo, pondo em práticas processos mais higienizáveis e repetíveis, o estilo foi se apurando sob Celis.

Ao migrar da madeira para o inox nos recipientes utilizados, Celis reduziu contaminações, uniformizou a fermentação e estabilizou o perfil. Por consequência, a Witbier moderna consolidou-se com:

  • 30%+ de trigo cru, complemento de malte Pilsen e aveia pela estabilidade coloidal;
  • alta carbonatação e colarinho denso;
  • 5–5,5% ABV, final seco;
  • especiarias variando além de coentro/laranja (há quem use camomila, erva-doce etc.).

1979–1990: expansão, incêndio e o braço das gigantes

O projeto de Celis decolou: na virada de 1979, comprou instalações para expandir; em 1985, a cervejaria adota oficialmente o nome Hoegaarden, até então de seu rótulo principal, e alcança cerca de 75 mil hl/ano. No entanto, no mesmo ano, um incêndio devastador e uma cobertura de seguro aquém empurram a empresa a buscar capital para se recompor e continuar atuando.

Incêndio Hoegaarden

Nesse ponto, entra em cena a Interbrew (então já dona da Stella Artois): começa como sócia minoritária, ao emprestar dinheiro para a reconstrução da Hoegaarden, mas a relação azeda com pressões de “ajuste de paladar” da Witbier e sobre a gestão. Por fim, Celis decide se afastar e vende a cervejaria para o grupo; o negócio é concluído no início da década de 1990.

O capítulo texano

Depois disso, Celis se muda para Austin, Texas, funda a Celis Brewery e difunde a sua “White” nos EUA (entre idas e vindas de direitos de nome como “Celis White”, atrelado à versão de Witbier desenvolvida pelo belga). Mais tarde, sua filha Christine Celis retomaria a produção em Austin com a receita de família. Enquanto isso, Hoegaarden seguiu na casa-mãe que, em 2004, nasceu da fusão Interbrew + Ambev = InBev (hoje AB InBev).

Pierre Celis - Hoegaarden
Pierre Celis (1925-2011)

2004 em diante: a luta pela manutenção da cervejaria em Hoegaarden

Com as sinergias industriais a pleno vapor, cogitou-se fechar a fábrica em Hoegaarden para migrar a produção. Contudo, a reação local e a pressão pública mantiveram a unidade na cidade, hoje com forte apelo turístico (história do estilo + visitação da fábrica).

Desde então, o portfólio europeu da marca traz edições como White (clássica), Rosée (framboesa), Cherry (cereja), Agrum/Citrus e Speciale (sazonal). No Brasil, a presença é majoritariamente da White.

Brasil: ida, volta e “vitórias” de gôndola

A Hoegaarden chegou por aqui através de importadores no passado, sumiu, e retornou com força por volta de 2019 via Ambev/AB InBev, com ativações, garrafas icônicas e depois latas (ganhando produção local em seguida). Uma dispersão que estimulou a reprodução do estilo por outras cervejarias.

Atualmente, ao lado dela nos mercados brasileiros, o brasileiro encontra Witbiers “primas”, de releituras como a estadunidense Blue Moon (Belgian-style Witbier) a rótulos dúbios, como a “Weiss” da Patagônia, que, na verdade, é uma Witbier.

O que a Hoegaarden e o estilo Witbier nos ensinam (além do serviço sem rodela de laranja)

  • Antes de tudo, fica claro que estilo não é algo fossilizado: o “branco” medieval, ácido e fugaz virou uma cerveja limpa, estável e repetível sem perder identidade.
  • Além disso, tradição e indústria podem coexistir: o resgate de um artesão teimoso virou ícone global, apesar de incêndio, seguros ruins e fusões.
  • Por outro lado, marketing confunde: “cerveja de trigo” não é tudo igual. Witbier ≠ Weissbier. A primeira é “branca” pelo conjunto cor + turbidez + leveza + especiarias.

Hoegaarden

Para beber com repertório: guia relâmpago de estilo⚡

Em resumo, aqui vai um guia rápido:

  • Corpo & visual: muito pálida, turva, espuma alta e cremosa.
  • Nariz & boca: cítrica, picante (pimenta/cravo), floral; dulçor baixo a médio-baixo; final seco.
  • Grãos: trigo cru (≥30%), Pilsen e aveia.
  • Especiarias: semente de coentro + casca de laranja; variações possíveis.
  • Álcool: ~5–5,5%.
  • Serviço: copo tumbler/tulipa, carbonatação alta. (E sim, dispense a rodela de laranja no copo!)

Conclusão: uma preservação histórica na Bélgica

Se estilos fossem espécies ameaçadas, a Witbier teria virado peça de museu em 1957. Felizmente, Pierre Celis a tirou da beira do abismo, traduziu o passado para processos do presente e, de quebra, brindou o mundo com a marca Hoegaarden. Desde então, o estilo ganhou escala, consistência e novos sotaques — dos EUA ao Brasil — sem perder seu DNA: uma cerveja leve, pálida, turva, cítrica e refrescante.

Portanto, quando você abrir uma Hoegaarden, há mais do que espuma no copo: há história, reinvenção e teimosia de quem se recusou a deixar um clássico desaparecer. 🍻 

Gabriel Gurian

Historiador, com Mestrado e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), meus estudos são pautados por bebidas e bebedores na história do Brasil, em diferentes períodos. Atualmente integro o projeto Comer História, desenvolvo pesquisa pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), com foco no nascimento da cultura cervejeira brasileira no século XIX, e colaboro com o Surra de Lúpulo.

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