No programa de hoje, vamos falar de filtração e clarificação da cerveja. Para nos ensinar isso e muito mais, a gente conta com o professor Marcus Dapper, que é mestre cervejeiro e malteiro, sommelier de cerveja, mestre em estilos, professor do ICB e acumula uma experiência de mais de 30 anos no mercado de cerveja e de bebidas.
Ouça o episódio na íntegra:
Temos o prazer de informar que este programa é oferecido pelo nosso Mecenas Empresarial, Cervejaria Uçá. Ficou curioso para beber essa cerveja direto de Sergipe? Não passe vontade, compre pelo site! Entrega em todo Brasil.
Filtração e Clarificação de cerveja
Filtração e clarificação: o que vem primeiro no processo cervejeiro? E já ajuda a gente com a definição desses dois termos para começarmos a entender esse assunto.
“A diferença dos dois é que ela tem um cunho científico. Quando a gente está falando de clarificação, a gente está falando de um processo que conta basicamente com a ação da gravidade.”
Marcus fez uma analogia com uma xícara de água quente onde se coloca chá a granel. Naturalmente, o que for mais pesado decanta, e o chá que inicialmente estava turvo vai se clarificando com o tempo. Ele comparou esse processo com o que ocorre na cerveja durante a etapa de maturação. A cerveja é mantida a baixas temperaturas, e ao longo do tempo, as leveduras e complexos proteicos vão decantando e se depositando no fundo do tanque, clarificando a cerveja.
Ele também mencionou que, além da gravidade, outros recursos são utilizados para filtrar a cerveja. Elementos filtrantes são empregados, onde o líquido passa por uma camada filtrante que retém as partículas causadoras de turvação, resultando em cerveja filtrada. Ele destacou a diferença entre filtração e clarificação: na filtração, o líquido é transferido de um lado para o outro através do filtro, enquanto na clarificação, o líquido permanece parado e os compostos turvos gradualmente decantam.
Quanto à ordem dos processos, Marcus observou que normalmente, toda cerveja filtrada foi previamente clarificada para melhorar a eficiência do sistema de filtração. Cervejas clarificadas são mais fáceis de filtrar, o que aumenta a performance do sistema, permitindo filtrar mais cerveja em menos tempo e sem saturar o filtro. No entanto, ele mencionou que algumas cervejas são clarificadas sem necessidade de filtração e outras não requerem nem clarificação nem filtração, dependendo dos estilos.
Existem estilos de cervejas que são necessariamente turvos, tais como Weissbier e NE IPA. Quais são as maiores causas de turbidez na cerveja? E em quais estilos é inadmissível a turbidez?
Nosso convidado responde dizendo que existem estilos de cerveja que são obrigatoriamente turvos porque historicamente foram criados assim e sua característica é não ser brilhante, mas predominantemente turva. Os dois estilos mais conhecidos que necessariamente são turvos são a tradicional cerveja de trigo alemã, a South German Weizenbier, que é assim há 500, 600, 1000 anos, desde que se produz cerveja na Europa, e, mais recentemente, as New England IPAs, criadas no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Essas cervejas são turvas e, no caso das New England IPAs, chegam a ser bastante carregadas.
Ele destaca que a turbidez ocorre porque há algo em suspensão na cerveja. Ele explica que, tecnicamente, a diferença entre uma cerveja brilhante e uma turva é a forma como a luz interage com as partículas presentes no líquido. Ele dá o exemplo de um copo de Bohemian Pilsner, como a Pilsner Urquell: a luz incide no copo e, como há pouquíssimas partículas, o desvio da luz é pequeno, permitindo que se veja através do copo.
“Então a luz desvia só um pouquinho. Quanto mais essa luz se desvia, mais turvo eu estou vendo. É isso que reage ao nosso olho, o olho humano. Então, assim, numa cerveja muito turva, a luz bate e ela desvia, às vezes, tanto que ela não consegue nem transpassar para o outro lado do copo. Então, é isso que diferencia o turvo e o brilhante. Então, basicamente, em linhas gerais, o que deixa a cerveja turva são leveduras de suspensão, complexos penina proteicos. São interações físico-químicas entre proteínas e polifenois que formam aglomerados de grande peso molecular e vão desviando a luz. Por exemplo, se tu pegar uma Weiss sem beira na prateleira, que tá ali há muito tempo, e tu for servindo ela no copo, ela não tá tão turva, né? Tanto que a técnica de serviço é justamente servir três quartos do copo, agita, serve o restinho pra ficar homogênea aquela turbidez. Agora tem algumas coisas, agora vamos falar um pouquinho de New England, que também tem levedura e tal. Mas a New England é como se ela fosse toda turva. Normalmente a gente não precisa agitar a garrafa para ter ela totalmente turva. Porque tem outras coisas que favorecem essas leveduras e essas proteínas e polifenois a ficarem em suspensão. Por isso que normalmente no New England você vai ter na receita um pouco de aveia, um pouco de açúcar também do próprio trigo, porque isso altera a viscosidade do líquido e dificulta a decantação dessas leveduras.”
No outro extremo, há cervejas que religiosamente precisam ser brilhantes e frutadas. Basicamente, tratam-se de cervejas de baixa fermentação da escola alemã, como Bohemian Pilsen, German Pilsen, Munich Helles e Vienna Lager. Cerca de 90% do volume de cerveja comercializada e consumida no mundo é uma derivação de uma lager alemã, que se tornou muito popular na América entre os séculos XVIII e XIX. Essas são cervejas de alto brilho, e se não chegarem brilhantes à mesa do consumidor, este pode achar estranho e pensar que a cerveja está ruim. Ele pode começar a associar a aparência da cerveja com a sua qualidade, estranhando se ela não estiver com o brilho esperado.
Imagino que o processo de filtração varia de acordo com o tamanho da indústria. Explica para gente algumas técnicas e tecnologias de filtração desde um brewpub, passando por uma indústria pequena, média e grande.
“Olha, a técnica e tecnologia em si, o que muda em grande escala, normalmente é o controle do processo. Mas o princípio físico de como tudo acontece acaba sendo muito similar. Mas vamos lá. Tem algumas etapas que não tem pra onde correr, independente se a cerveja é feita em casa, se é o homebrew que tá fazendo em casa, se é um brew pub e tal. Tem alguns momentos aí que não tem jeito. Primeiro, vamos começar do começo. Se a gente for pensar, em todo lugar que se faz cerveja, independente aonde seja, por segurança primeiro eu preciso filtrar água”.
Marcus explicou que, ao fazer cerveja em casa, a água pode vir da concessionária pública ou ser comprada. Ele sugere pelo menos um filtro de partículas, como os que muitas pessoas têm em casa, muitas vezes combinados com carvão ativo para remover cloro, já que a água usada na produção de cerveja não pode ser clorada. Assim, a filtração começa com o uso desse filtro caseiro. Em uma fábrica grande, apenas o tamanho do filtro muda, mas a função é a mesma.
Na etapa de produção do mosto, a limpeza é essencial. Após misturar a água com o malte e realizar as reações enzimáticas, é necessário separar o mosto do bagaço do malte. Independentemente do local de produção, existem técnicas e equipamentos diferentes para isso. O processo pode ser dividido em dois métodos: clarificação e filtração.
No método de clarificação, utiliza-se a casca do malte. Em cervejarias caseiras, sistemas de recirculação, como o single vessel, usam a casca do malte como elemento filtrante. Outra técnica é o BIAB (Brew in a Bag), uma telinha com recirculação forçada que também serve como sistema de filtração para o mosto. Em médias e grandes cervejarias, são usados filtros prensa, que possuem placas com telas de polipropileno especial. A mistura de água com malte é prensada, extraindo o mosto.
Depois de obtido, o mosto é fervido, adiciona-se o lúpulo, e a mistura vai para fermentação e maturação. Na etapa de maturação, a clarificação ocorre pelo efeito da temperatura, com a cerveja sendo armazenada a zero grau ou o mais baixo possível.
Em cervejarias caseiras e na maioria dos brewpubs, uma boa clarificação é seguida pela filtração com cartuchos, que saturam facilmente se a clarificação não for eficiente. Como os cartuchos não são baratos, uma boa clarificação é essencial. Para microcervejarias, duas tecnologias diferentes são utilizadas: filtros de terra de diatomácea e filtros de cartucho. A terra de diatomácea é um elemento filtrante mineral, de origem fóssil, insolúvel em água e cerveja. Esse pó cria a camada filtrante, por onde a cerveja passa, retendo impurezas e saindo filtrada do outro lado.
“Então hoje já tem um fornecedor de equipamentos para micro cervejarias no Brasil que já está trabalhando no desenvolvimento disso. Então, daqui duas semanas a gente tem a Brasil Brau em São Paulo. já vai ter exposição dos primeiros equipamentos, ainda para volumes na faixa dos 2 mil, 3 mil litros por hora, e se encaixa em várias micro cervejarias no Brasil. E a tendência é que depois disso, esses equipamentos sejam um pouquinho mais reduzidos para ficar ali na faixa dos 800 a 1 mil litros por hora, para começar a atender brewpubs e cervejarias. Pro homebrew ainda está muito longe, né? A luz do filho do túnel está um pouquinho mais distante, mas a tecnologia está aí, está evoluindo e vai chegar.”
Quais são os principais benefícios da filtração? Nós demos uma breve estudada aqui e, nos corrija se estivermos errados, mas a filtração pode acontecer em mais de uma etapa do processo de produção. Correto? Você pode nos guiar através dessas fases e seus efeitos na cerveja?
Marcus destacou que, nessa fase, o objetivo não é obter um mosto de alto brilho, mas sim preparar para a fervura um mosto com a menor quantidade de sólidos possível. Isso é importante porque ferver casca de malte pode adicionar um sabor desagradável à cerveja, prejudicando seu perfil sensorial. Portanto, a filtração do mosto visa evitar que sólidos desnecessários, como cascas de malte, sejam fervidos.
Ele comparou esse processo com a preparação de chá ou café, onde não se deve ferver as folhas de chá ou os grãos de café, mas sim fazer uma infusão com água quente. Da mesma forma, não há razão para ferver cascas de malte na produção do mosto.
Ao falar sobre a cerveja, especialmente os estilos que exigem filtração, Marcus destacou que o grande benefício é a impressão visual. Ele mencionou o exemplo comparativo entre Weizenbier e Kristallweizen, e introduziu outro subestilo alemão chamado Kellerbier. Kellerbier são geralmente Lagers, na maioria das vezes Pilsen, que são envasadas antes da filtração. Ele citou a Rackabchock, talvez a Kellerpils mais famosa da Alemanha, e observou que ao comparar a versão filtrada com a não filtrada, nota-se claramente quanto a levedura contribui para a composição de aromas e sabores.
“Normalmente, isso faz uma diferença muito grande quanto mais leve for a cerveja, que é justamente o caso de todos esses estilos de baixa fermentação, como as lagers provenientes da escola alemã. No entanto, há um ponto crucial que muitas vezes é um grande problema, especialmente para microcervejarias: a questão da tecnologia. Ao filtrar a cerveja, ela está sendo manipulada em um momento em que é mais sensível, e há o risco de incorporar oxigênio.
Mais tarde, às vezes em poucas semanas, após a cerveja estar envasada em barril, garrafa, lata, etc., pode-se começar a perceber que a lager parece estar oxidada, com um sabor de papelão. Muitas vezes, essa incorporação de oxigênio ocorre durante o processo de filtração, tornando-se um ponto crítico a ser cuidado. Ou seja, o filtro é colocado para trazer o benefício de uma cerveja mais “limpa”, pois o estilo exige isso. No entanto, se o processo não for realizado corretamente, com todos os controles necessários, e houver uma incorporação excessiva de oxigênio, o ganho obtido pode se tornar um problema, trazendo um off-flavor que não deveria estar presente.”
Filtração e cerveja sem álcool. Vamos falar sobre isso? Já conversamos em alguns episódios sobre técnicas de extração de álcool e, salvo engano, a filtração por osmose era uma delas. Explica para gente esse processo e quais são os benefícios para a extração do álcool e a manutenção das características sensoriais das cervejas.
“É uma osmose reversa, é uma técnica para de-alcoolização. Na verdade, para de-alcoolização de vários produtos. Pode ser usada para vinho, pode ser usada para qualquer outra bebida.”
Marcus explicou que, em menor escala, muitas microcervejarias ao redor do mundo utilizam técnicas alternativas para produzir cerveja sem álcool, uma vez que os equipamentos de desalcoolização são grandes e caros. Essas técnicas incluem fermentação interrompida ou o uso de leveduras maltose-negativas, permitindo a produção de cervejas com menos de 0,5% de teor alcoólico. No entanto, para conseguir uma lager que não tenha gosto de mosto, que não seja pesada ou adocicada, a melhor opção é pegar uma cerveja pronta, totalmente fermentada, e remover o álcool presente.
Existem basicamente duas técnicas para isso. Uma é a evaporação a vácuo, onde o álcool, que normalmente evapora a cerca de 78,4 graus Celsius, é evaporado a uma temperatura mais baixa, em torno de 30 graus Celsius, devido à pressão negativa. Esse método utiliza uma coluna de destilação a vácuo. O problema é que, junto com o álcool, evaporam também vários compostos que compõem o perfil sensorial da cerveja, como ésteres e fenóis. Isso pode fazer com que a cerveja pareça diferente, como se estivesse faltando algo.
A outra técnica é a osmose reversa, que utiliza membranas específicas e seletivas para o álcool. Essas membranas retêm muito menos compostos além do álcool em comparação com o processo de destilação. Assim, o processo de reconstituição da cerveja sem álcool após a retirada do álcool é muito mais simples do que quando a desalcoolização é feita por calor e evaporação.
Marcus também mencionou que, em uma cerveja sem álcool desalcoolizada por destilação, é necessário recompor os aromas perdidos. No entanto, quando a desalcoolização é feita por osmose reversa, ou seja, por uma espécie de filtração de alta tecnologia, a recomposição de aromas é quase desnecessária, tornando o processo muito mais simples.
Ouça também: Envase Cervejeiro com Guilherme Bonn de Hollanda
Gostou do nosso bate papo? Seja um apoiador do Surra de Lúpulo clicando aqui.