Nesse episódio do Encontros Selvagens, vamos falar sobre Chicha de Milho e toda a identidade etílica peruana com Carla Cisneros Zinuga e Anderson Olarte Carpio (Victory Brewing do Peru), mediação por Cilene Saorin.
Em 2023, o 2ª Encontro Selvagem contou com o Apoio do Conselho Federal de Química (CFQ), e a presença de palestrantes internacionais. Além disso, a semana incluiu o lançamento da 1ª Safra das cervejas da Projeto Manipueira e a 1ª Feira Selvagem, que será um encontro de negócios e degustação, dedicado a cervejas ácidas e complexas do Brasil e convidadas do exterior.
Encontro Selvagem é um programa realizado pelo canal Surra de Lúpulo, Abracerva, e com apoio nesta temporada do Conselho Federal de Química, CFQ. Sigam @encontroselvagem no Instagram e não percam nenhum conteúdo.
Ouça na íntegra:
Chicha de milho e a identidade etílica peruana
Para contextualizar a conversa, vamos lembrar que a chicha de jora é uma bebida fermentada de milho, originalmente, e vocês podem me corrigir a qualquer momento se eu estiver errada. Esta bebida tem um paralelismo com o cauim, que foi a bebida que discutimos hoje de manhã. O cauim é uma bebida fermentada a partir da mandioca. Exato. É própria dos povos indígenas da região da Amazônia. Então, o Peru, incluindo a Amazônia que vocês têm, a parte dos povos amazônicos, talvez também produza cauim, além da chicha, nos Andes.
Cilene segue contando sua história com a Chica, sendo uma perspectiva de uma brasileira que estudou um pouco sobre os povos latino-americanos durante cerca de 25 anos, metade da idade que tem hoje. A primeira vez que ela foi ao Peru foi aos 26 anos, em 1998. Sua memória inclui suas jornadas por Machu Picchu, em Cusco, onde eles estão.
Cilene viveu a experiência da seguinte maneira: por toda a caminhada, com muitos esforços e variações de temperatura, durante o dia e a noite, pelo frio dos Andes, comendo milho, batatas, quinoa em sopas riquíssimas que aqueciam e alimentavam muito. Chicha, claro, e cerveja, especialmente no último dia antes de chegarem a Machu Picchu, para ver a entrada do sol.
Além disso, Cilene lembra do Peru com sua visita a Machu Picchu e todas as construções arquitetônicas pré-incas, a magia das matemáticas, a inteligência do povo quechua com a arquitetura e com a ideia de divindade do milho, do sol, do amarelo divino. Para ela, a chicha parece refletir essa divindade. Além de toda a contemporaneidade que se tem misturando diferentes ingredientes hoje em dia.
Carla se apresenta:
“Muito obrigada pelo carinho tão amoroso ao nosso país. Se não me engano, na descrição, o Peru é isso, né? Muita cultura, muita tradição, muita história, comida rica e bebida rica também. O Peru é isso.
Sim, eu sou Carla, uma empreendedora da vida, na verdade. Venho trabalhando no mundo da cerveja artesanal há talvez 8, 10 anos, já lidando com produtos artesanais um pouco antes disso. Conhecer também a bagagem, a história do nosso país nas bebidas, não me chocou, ou seja, não vivi isso plenamente. Eu sou de Lima, então não vivi isso até que, por causa da abertura de um bar na cidade de Cusco, me mudei para lá e comecei a conhecer de primeira mão a tradição, o que éramos nós.
Em Lima, não se vive essa tradição. Em Lima, temos a cultura crioula, mas desconhecemos a chicha; não se toma chicha, não a encontramos facilmente. Para mim, foi uma surpresa muito bonita. No bar que eu tinha, conheci Anderson, um garoto super apaixonado e amante da cerveja artesanal. Foi aí que surgiu uma sinergia: eu trazendo meu mundo cervejeiro a Cusco e Anderson, com sua história, tradição e família, entrando no mundo cervejeiro. Foi então que nasceu a Victoria, quando começamos a experimentar com a chicha de jora. Agora, temos um trabalho no povoado de Anderson, chamado Mojepata, onde produzimos em uma escala muito pequena, tudo de forma artesanal e apaixonada.”
Anderson segue se apresentando:
“Bom, estou feliz por estar aqui e poder falar dessa cultura tão bonita que é a chicha, que está se perdendo, mas esperamos que não. Meu nome é Anderson Olarte e venho de Molhepata, como a Carla disse. Venho de uma família que sempre fez chicha. Lá no povoado de Molhepata, a chicha está presente em cada momento, em cada reunião, em cada trabalho; sempre se prepara chicha.”
Tanto Carla quanto Anderson tem história de produção de chicha em sua família. Há um estudo sobre as variedades de milho, onde, se não me engano, há 50 originárias no Peru. Me parece que é o segundo país com mais variedades, porque o México tem mais, se não me engano. Mas, de qualquer forma, produzimos bastante, e há híbridos também, ou seja, subtipos. Entre essas, já chegamos a fazer até 300 variedades distintas, através de misturas.
E todos os tipos de milho são passíveis de fermentação a partir da germinação ou de outros processos. Usam um tipo específico para a chicha, outros mais para a cancha; os mais pequenos, por exemplo, para tostar.
Anderson conta sobre o início de sua empreitada com a chicha. Carla abriu um bar em 2009, onde Anderson trabalhava. Assim, ele chegou ao Novo Mundo, um bar cervejeiro que Carla havia aberto, e se interessou pelo mundo da cerveja. Em casa, começou a fazer cerveja, como muitos, em pequenos lotes de quatro litros. Conversando com Carla, surgiu a ideia de fazer chicha, porque ela perguntou, sendo um bar tão conhecido, e considerando que em Cusco há chicha, por que não poderiam oferecer chicha também?
Então, ela perguntou se Anderson sabia fazer chicha. Ele respondeu que sim, pois isso era algo típico de onde ele vinha. Assim, começaram a fazer chicha e a vender junto com a cerveja, em tapas. Foi aí que a ideia de fazer chicha nasceu, e eles começaram a experimentar. No início, Anderson não entendia muito sobre fermentação, sobre o uso de bactérias e leveduras selvagens. Com alguns cervejeiros, incluindo um que veio da Bélgica e lhe falou sobre Lambic, ele percebeu que a chicha era algo parecido.
Anderson começou a estudar e a compartilhar a informação com Carla, aprendendo como controlar esses micro-organismos vivos. Foi um processo de tentativa e erro. Às vezes, havia chichas que eram muito intensas em acidez, o que os deixava questionando de onde isso vinha. Com o tempo, Anderson se interessou mais pelo assunto, começou a ler e a entender melhor o processo. Ele disse que, embora ainda não tivessem controle total, já sabiam mais ou menos como as leveduras se comportavam e como obter um resultado agradável para as pessoas que queriam provar.
Isso mesmo. Que bom, embora seja uma pena que tenha demorado tanto para resgatarmos a identidade, originalidade e valor dos povos e sua expressão cultural gastronômica. Eu perguntaria agora mesmo… A partir de um pensamento de Claude Lévi-Strauss, um antropólogo franco-suíço que a Línea comentou hoje de manhã, que se dedicou muito à gastronomia de uma maneira geral, e é muito importante em algumas de suas frases impactantes. Há uma delas que eu adoro, e vou dizer agora, e a partir dela farei uma pergunta, entre outras.
Claude Lévi-Strauss disse uma vez: “A cozinha converte a natureza em cultura.” Quando estamos na cozinha, com todo o calor e frio, seja na cozinha de uma cervejaria, seja na de uma chicheria, quanto da natureza se transforma em forma de expressão humana, de tradição e cultura?
Qual é a identidade da chicha de vocês? E o que faz a identidade da chicha?
Em termos gerais, a chicha, historicamente, representa a festa dos povos originários, as celebrações, os ritos, a religião, a adoração ao sol e a santidade da terra. A chicha representa tudo isso, e é por isso que, desde o início, era consumida em cerimônias religiosas; ela também era considerada medicina, sendo magia, festa, alegria e celebração.
Digamos que essa parte da celebração, que é a que mais gostamos, é a que se mantém até hoje nas chicherias. Como foi mencionado, existem as chicherias, e as picanterias e chicherias são patrimônio peruano reconhecido. A ideia é conservar e cuidar desse patrimônio. Isso é cultura, é natureza. Falamos de fermentações naturais, de saúde, de milho, um produto que a terra nos dá, e de celebração, festa e alegria.
Há chichas de diferentes grãos. Também há chicha de cevada. Há uma que é chicha branca, de um maiz branco, com arroz, ave. Mas não tem grau alcoólico, a chicha branca. É como um refresco. Sim, agora, no último, tiramos uma que tem trigo, quinoa, kiwicha, maiz e também cevada. Acho que a variedade de material para trabalhar é imensa, tanto em insumos, também a chicha da yuca, a quantidade de granos andinos e essa mistura com o mundo cervejeiro.
“Eu, pessoalmente, pude observar, não apenas na gastronomia ou na bebida – vamos chegar a isso – mas acho que em tudo, na música, na roupa, há uma tendência, como dizem, de que tudo já está feito, em certo sentido. Então, acho que estamos começando a olhar para trás, devido à quantidade de gerações que passaram desde aqueles que realizaram coisas históricas. A nossa geração é algo completamente novo em comparação com o passado. Então, acho que começamos a pensar que tudo já foi feito, que está tudo pronto. Então, de onde podemos encontrar mais inspiração? Os pioneiros nisso têm que observar o passado, voltar ao básico, fazer as coisas mais simples. Não precisamos nos tornar loucos para criar uma cerveja nova de repente; devemos examinar o que já temos aqui. Acredito que a origem desse cansaço talvez seja porque toda indústria tende a saturar. A comercialização de certas coisas pode ter levado todos, de repente, no mundo cervejeiro, a se concentrarem nas IPAs em certo momento, mas agora, todos fazem IPAs, então, o que mais há para experimentar? Todos estão produzindo esses estilos. Então, estamos começando a ver um movimento em direção às cervejas sour, às fermentações mixtas, às fermentações selvagens e às cervejas azedas. Acho que aí está a tendência no mundo, de abandonar esse estilo estabelecido, de se mover em uma direção diferente. É um bom momento, porque estamos valorizando mais a diversidade e estamos mais abertos a aceitar produtos diferentes.”
Esse aspecto de trabalhar mais com grãos locais ajuda a fortalecer a economia local também é importante começar a utilizar mais grãos produzidos no Peru. Atualmente, na indústria cervejeira, praticamente tudo é importado, não é mesmo? A cevada malteada, o lúpulo, pois o lúpulo no Peru, antes havia uma malteria de uma empresa cervejeira industrial, mas não há mais. A malteria de Bacu. A área produtiva era em Anta, onde estamos localizados, mas já não existe mais uma malteria local, tudo é importado. Lúpulos importados, leveduras importadas, como segue esse modelo de negócio, são grãos cultivados em nossa localidade. Basicamente, temos opções como usar ervas locais em vez de lúpulos, como o gruit, e também temos leveduras selvagens, que são o fermento natural da nossa chicha. No final, não é necessário muito. Além disso, utilizamos frutas locais e sazonais: quando há morangos, usamos morangos; quando há outras frutas, usamos essas frutas, pois também não temos recursos para importar nada, então é preferível que sejam produzidas localmente.
E o que não vende comida é chamado apenas de chicheria, mas novamente, as regulamentações no Peru não são muito rigorosas para ninguém. Então, uma chicheria precisa ter uma permissão de restaurante que esteja limpo. Eles têm seu banheiro, não é? Pelo menos cuidam disso, não é mesmo? Mas digamos que não há alguns requisitos, eles precisam de algum tipo de certificação, isso não existe. Falamos da chicha tradicional que é preparada no mesmo dia na casa, desculpe, de um dia para o outro. Eles entram e saem, a receita é de cada um. Vendem sua chicha para a casa, têm sua própria receita. Inclusive, assim mesmo, vendem sua chicha para levar, porque pensam que vão copiar, que vão levar sua essência e vão copiar o que eles estão fazendo. Então, cada casa tem sua própria receita em relação aos regulamentos. É prejudicial? Sim, porque essas chicherias são para locais, normalmente, e aí fazem a festa e eles estão felizes.
O estrangeiro tem um pouco de medo, tem que ser muito atrevido, tem que querer conhecer a história real para ir sentar em uma chicheria. Inclusive o de Lima, o limeiro é, novamente, não sabe o que é chicha. Apesar de que em Lima, todas as pessoas que chegaram da província de Lima, que atualmente vivem lá, encontram alguns postos na rua que vendem uma chicha rica, não é igual à da Andes, mas é rica, mas é para os locais. Mas, em relação aos olhos, acho que para os estranhos, sim, pode jogar um pouco contra a falta de regulamentos. No nosso caso… São processos um pouco mais longos que até nos permitem envasá-la nessa versão fusão com cerveja. Então, nós podemos obter um registro sanitário como chicha de jora envasada ou como cerveja, se tivesse malte de cevada. Existe a chicha de jora para a cozinha, que também tem um registro sanitário e que também se exporta. Mas para que a bebida não esteja viva… já tem um processo industrial, já foi pasteurizada, já não se modifica no envase e se vende para a cozinha normalmente, porque também se cozinha muito com a chicha.
Sobre a fiscalização, Anderson explica:
“Normalmente, acho que no Peru estamos em um momento bastante complicado. Geralmente, se você não está em Lima, não recebe muita atenção, porque Lima é a capital, o centro comercial, onde está o dinheiro, onde estão os grandes empresários, onde se pode pagar. Então, nós, por exemplo, temos nos candidatado… O projeto é nosso, certo? Entre produção, inovação, criação de receitas, marketing, participação em eventos e interação nas redes sociais, às vezes não conseguimos fazer tudo, então, levamos com calma. Tivemos a oportunidade de nos candidatar a projetos de investimento do Estado, projetos de inovação, onde fomos bem avaliados, atendemos a todos os requisitos para que pudessem nos apoiar, mas sem financiamento, não poderiam nos ajudar. Então, precisamos continuar insistindo. Às vezes, requer um pouco mais de esforço, de estar presente, de falar com certos órgãos, com certas autoridades para obter ajuda. Além disso, o povo de Mojepata já carece de muitas coisas para simplesmente bater na porta da prefeitura e pedir algo. Estamos muito atrasados. Às vezes, é necessário ter dinheiro para que nos prestem atenção e dizer: “Olha, eu tenho dinheiro, não é?””
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