O Surra de Lúpulo está de volta, dando continuidade à nossa série histórica! Hoje vamos falar sobre o uso da cerveja como moeda nos tempos antigos. Lembrando que sempre contamos com a pesquisa do Sérgio Barra, ou como muitos o conhecem, Profano Graal.

Ouça o episódio do podcast na íntegra:

 

A CERVEJA COMO MOEDA

Foto de ibrachina.com.br

De acordo com Yuval Noah Harari, autor de Sapiens, o dinheiro é uma forma de regularizar a confiança, de aproximar as pessoas depositando em um objeto, uma crença de valor em comum entre os envolvidos. A moeda é uma unidade de valor reconhecida por uma sociedade por meio da qual são feitas trocas de bens e serviços. Desempenham também funções como reserva de valor e unidade de medida.

 

Os indícios mais antigos de utilização de moedas são da China, no período de 1.100 a.C. Já no Ocidente, a moeda apareceu pela primeira vez no séc. VI a.C. na Lídia, onde atualmente é a Turquia. Dali o seu uso estendeu-se para a Grécia, e os fenícios  disseminaram o seu uso por toda a área mediterrânica. 

Apesar da existência da moeda, em muitas sociedades se continuava a utilizar por muito tempo a troca de serviços e produtos por outros serviços e produtos, o tal escambo. Nas comunidades agrárias, sua principal riqueza é o poderio agrícola. Grãos serviam não apenas para produzir alimentos, mas circulavam como moedas, em forma de pagamento de tributos e salários. Soldados, clérigos, artesãos, mercadores e servidores dos palácios podiam receber seu pagamento integral, ou partes, em rações de cereais, em pão ou em cerveja.

Tanto na Mesopotâmia quanto no Egito, a cevada, o trigo, o pão e a cerveja se tornaram mais do que itens alimentícios básicos. Eram também meios convenientes e frequentes de pagamento e moeda corrente. Como afirma Standage:

 

“Os líquidos, facilmente divisíveis, representavam formas ideais de dinheiro”. (STANDAGE, 2005, p. 28)

 

Mas o pagamento em pão e cerveja, itens básicos de subsistência, atendia também à necessidade de garantia da manutenção da mão-de-obra e reprodução do modo de produção. Ou, em outras palavras, garantia que os trabalhadores se mantivessem disponíveis para o trabalho. 

Em outros períodos históricos, como na Alta Idade Média ocidental (séculos V a X), o sistema de trocas (ou de remuneração em forma de bens) continua desempenhando um papel importante na economia. Na medida em que a posse da terra continua sendo a principal forma de riqueza, os produtos agrícolas são ainda a principal forma de remuneração. Em épocas posteriores, a remuneração por bens passa a ocupar um papel marginal, muito limitado geográfica e temporalmente a sociedades menos complexas.

 

MESOPOTÂMIA

Os sumérios

A primeira civilização da História, os sumérios, viviam em cidades-estados fundadas em torno do templo (ou templos) dedicado ao seu deus protetor. Por isso, também eram denominadas de cidades-templo. Porque os sumérios acreditavam que os deuses as haviam fundado para que fossem centros de culto dedicados a eles.

As cidades eram governadas por um líder local (patésis), rei (lugal) ou supremo-sacerdote. Os templos estavam ligados ao poder estatal e os soberanos eram, ao mesmo tempo, chefes políticos e religiosos. A população estava sujeita ao pagamento de tributos para a construção de diques, canais de irrigação, templos e celeiros. Que eram pagos em forma de grãos, animais ou outras mercadorias, como oferendas aos templos. Na proximidade de cada templo se encontravam os seus depósitos: 

 

“Assim como o líder de uma aldeia neolítica coletava o excedente alimentar, os sacerdotes das cidades sumérias coletavam os excessos de cevada, trigo, carneiros e tecidos. (…) Os sacerdotes podiam, por exemplo, pagar pela manutenção dos sistemas de irrigação e pela construção de edificações públicas entregando provisões de pão e cerveja”.

(STANDAGE, 2005, p. 24) 

 

Imagina a dificuldade que era registrar o que era recebido e o que era despendido. Para garantir o funcionamento desse sistema foi criada a escrita. Tudo era registrado, a coleta e distribuição de grãos, cerveja, pão e outras mercadorias.

O que me faz perguntar, a primeira missiva teria sido uma conta ou um holerite? Dessa forma, os primeiros documentos escritos pela Humanidade (que datam de cerca de 3400 a.C.) foram listas de salário e recibos de impostos. Neles, os símbolos utilizados para representar a cerveja aparecem com muita frequência. Assim como os símbolos para grãos, têxteis e animais vivos. 

Esses primeiros documentos eram tabuletas de argila cozidos ao sol que cabiam na palma da mão e muitos consistiam em listas de nomes com a indicação “cerveja e pão para um dia”. Provavelmente a forma padrão de remuneração por algum serviço.

Segundo Standage, registros em escrita cuneiforme indicavam que os membros de posição inferior na força de trabalho recebiam um sila (aproximadamente um litro) de cerveja por dia como parte de sua ração. Funcionários iniciantes recebiam dois sila; funcionários mais elevados e senhoras da corte, três sila; e os funcionários principais, cinco sila. Funcionários importantes usavam a cerveja que recebiam a mais para gratificar mensageiros e escribas e pagar outros trabalhadores: 

 

“Um documento de 2035 a.C. é uma lista de provisões pagas a mensageiros oficiais da cidade de Umma. Vários montantes de cerveja ‘excelente’, cerveja ‘comum’, alho, óleo de cozinha e temperos foram entregues a mensageiros”

(STANDAGE, 2005, p. 28).

 

Outros registros indicam que a cerveja era dada em pagamento a mulheres (dois sila) e crianças (um sila) por alguns dias de trabalho no templo. 

Essa “tabela de cargos e salários” é muito encontrada pela internet juntamente com a afirmação de que estaria estabelecida no Código de Hammurabi (um dos mais antigos conjuntos de leis da História). Trabalhadores normais recebiam 2 litros de cerveja por dia, funcionários públicos recebiam 3 litros e administradores e sacerdotes: 5 litros. Porém, não é possível encontrar em nenhum dos 282 parágrafos do Código a lei acima citada, que estabeleceria a quantidade diária de cerveja para cada casta social.

Em dois dos quatro parágrafos do Código de Hamurabi, que regulam o funcionamento de tabernas, apresentam um exemplo de pagamento feito em grãos justamente para a compra de cerveja. 

O parágrafo 108, que é o parágrafo mais incorretamente citado nos cursos e textos de História da cerveja, determina o seguinte: Se uma taberneira não aceitar cevada como preço da cerveja, mas aceitar prata, e o preço da bebida for menor do que o dos grãos, ela deverá ser condenada e lançada na água”. Esse parágrafo revela, em primeiro lugar, o papel central da mulher na fabricação e comercialização de cerveja, como cervejeira e proprietária das tabernas; mas também que a bebida deveria ser paga em grãos que, provavelmente, serviriam para produzir mais bebida. Ao contrário do que se afirma comumente, essa lei não diz respeito à qualidade da cerveja e sim ao seu preço; e também não manda afogar a cervejeira na própria cerveja. 

O parágrafo 111 volta a tratar da remuneração da taberneira / cervejeira: “Se uma taberneira deu um jarro de cerveja a crédito, na colheita ela tomará 50 litros de cevada”. A hipótese é a de que a taberneira forneceu cerveja “a crédito”, ou seja, como um empréstimo sem juros. Mais uma vez aqui essa remuneração em espécie garante a continuidade da sua atividade.

 

DESEMBARCANDO NATERRA DE CLEÓPATRA

 

Também na cultura da civilização egípcia antiga (entre 3.100 a.C. e 30 a.C.), a cerveja era importante e há referências a ela desde documentos da terceira dinastia (que começou em 2.650 a.C.). Como explica Standage (2005, p. 23), uma análise da literatura egípcia descobriu que a cerveja era mencionada mais vezes do que qualquer outro item alimentar.

Análises de documentos administrativos e listas de oferendas revelam os termos que eram usados para se referir à bebida preparada à base de cereais fermentados: zythum, hekt, heqet, henequet, seremet, desheret ou tenemu. É no Egito que surgem, pela primeira vez na história, edificações específicas para a produção de cerveja. O que hoje chamamos de cervejaria. Cada templo possuía uma cervejaria/padaria que produziam muitas quantidades de cerveja e pão ofertados aos deuses. 

A cerveja servia como moeda para pagar serviços e trabalhos (o termo utilizado era Kash). Como na Mesopotâmia, os impostos eram entregues aos templos em forma de grãos e outras mercadorias e depois redistribuídos como forma de financiar obras públicas. É bastante conhecida a informação de que os trabalhadores que construíram as pirâmides eram pagos em cerveja. Segundo registros encontrados numa vila próxima aos locais onde os operários comiam e dormiam. 

Os registros indicam que, no momento da construção das pirâmides, em torno de 2500 a.C., o lote padronizado para um trabalhador era de três ou quatro bolos de pão e duas canecas contendo cerca de quatro litros de cerveja. Gerentes e funcionários recebiam maiores quantias das duas coisas. 

Essa quantidade de 4 a 5 litros de cerveja diários é reproduzida em vários textos. No site Beer Studies nós encontramos uma análise mais detalhada de uma tabela de ração mensal de grãos para trabalhadores da vila de Deyr el-Medineh. Seu nome original era Set maat (“Lugar da verdade”) e essa vila abrigou os artesãos que trabalharam nas tumbas do Vale dos Reis durante as 18ª a 20ª Dinastias do Novo Reino (c. 1550 a.C.– c. 1080 a.C.). 

 

tabela egipcia de precificação
Tabela 1. rações mensais de grãos (trigo e cevada) para uma equipe por status social em Deir el-Medineh (1 sack-khar ≈ 75 l) FONTE: The workers’ rations. Working for bread and beer in ancient Egypt – Beer Studies (beer-studies.com)

 

A cidade pode ter sido construída à parte da população em geral, a fim de preservar o sigilo tendo em conta a natureza sensível do trabalho realizado nos túmulos. No seu auge, a comunidade continha cerca de 68 casas espalhadas por uma área total de 5.600 m2, abrigava uma população mista de egípcios, núbios e asiáticos que trabalhavam como cortadores de pedra, estucadores, carregadores de água, etc., bem como aqueles envolvidos na administração e decoração dos túmulos e templos reais. Dado interessante é que nesta cidade existia um templo de Hathor, deusa egípcia da cerveja e da fermentação.

Aqui também, como no caso da Mesopotâmia, o sistema de rações nos informa que a quantidade de grãos por pessoas é proporcional à sua posição social. Supervisores e escribas recebiam a mesma quantidade mensal de grãos (entre trigo e cevada): 562 litros. Enquanto um trabalhador ou artesão receberia, então, 300 litros de trigo e 112 litros de cevada por mês. Fazendo um total mensal de 412 litros de grãos para uma média diária de aproximadamente 13 litros de grãos por pessoa. Dado que uma pessoa não come 13 litros de grãos por dia, compreende-se que o beneficiário das rações também alimentava seus familiares. Estima-se que com 13 litros um trabalhador poderia alimentar diariamente uma família de quase 10 pessoas, incluindo crianças. 

Cada trabalhador poderia preparar por conta própria uma parte dos 112 litros de cevada recebidos por mês e trocar a outra parte por bens de sua necessidade. Cevada e trigo, então, funcionavam como moedas correntes no comércio local.

Ao mesmo tempo, parte das rações de cevada atribuídas às equipes era fabricada pelas cervejarias estatais e entregue aos trabalhadores em jarras de cerveja. Essas jarras tinham capacidade padronizada para que cada beneficiário soubesse a quantidade de cerveja que estava recebendo.

Conhecendo a densidade da cerveja que tinha na jarra (proporção grãos / cerveja), ele podia calcular o equivalente em grãos que recebeu. A densidade da cerveja podia variar entre, por exemplo: cerveja ordinária = 1:1 (um litro de cevada para um litro de cerveja), cerveja superior = 2:1 e cerveja inferior = 1:2.  

Uma equipe de aproximadamente 20 pessoas recebia cerca de 277 hectolitros de cevada “para cerveja” por ano. Assumindo que os trabalhadores recebiam em cerveja ordinária (proporção de 1:1), corresponde a 277 hl de cerveja produzida por família por ano. Uma grande propriedade real empregava em média 2.000 a 3.000 pessoas de todas as profissões. E existiam dezenas dessas propriedades por todo o Egito.

Logo, o volume diário de cerveja produzida exclusivamente para a manutenção da força de trabalho era enorme. Apesar do autor fazer questão de deixar claro que os números dessa tabela não podem ser generalizados para todo o Egito. 

Para os egípcios, pão e cerveja significavam sustento em geral. Os hieróglifos que formavam o símbolo para “alimentação” era uma combinação dos hieróglifos para pão e cerveja. Uma inscrição egípcia encorajava as mulheres a fornecerem a seus filhos em idade escolar duas jarras de cerveja e três pedaços pequenos de pão diariamente, a fim de assegurar o seu desenvolvimento saudável.

 O uso do pão e da cerveja como meios de pagamento ou moeda significava que tinham se tornado sinônimo de prosperidade e bem-estar. A expressão “pão e cerveja” era usada no Egito como um cumprimento diário, para desejar a alguém boa sorte ou boa saúde. 

 

IDADE MÉDIA

 

Como explica o medievalista francês Jacques Le Goff, quando se trata de dinheiro, a Idade Média representa uma fase de regressão. A moeda, ao longo da Idade Média, era rara, muito fragmentada e diversa. O que a impedia de decolar economicamente: 

 

“O dinheiro não é personagem de primeiro plano na época medieval, nem do ponto de vista econômico, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista psicológico e ético. (…) As realidades que designaríamos hoje por esse termo ‘dinheiro’ não são essencialmente aquilo que faria a riqueza. (…) Esse rico, seja como for, o é mais em terras, em homens e em poder do que em dinheiro monetizado”.

(LE GOFF, 2014, p. 8) 

 

Dessa forma, ainda que não tenha encontrado nenhuma menção específica à cerveja, na Idade Média também poderia existir alguns tipos de pagamento que incluíam mercadorias em espécie e bebida. Na Alta Idade Média (entre os séculos V e X), os camponeses pagavam ao menos uma parte de uma espécie de imposto em produtos agrícolas e também em serviços (três dias por semana de trabalho nas terras do senhor).

A pouca moeda que circulava era retida em castelos e mosteiros e transformada em objetos que constituíam uma reserva monetária. E quando havia necessidade, esses objetos eram fundidos para a fabricação de moeda. Sabemos que, a partir do século XI, a economia volta a se monetarizar. Devido a um aumento demográfico há também um aumento da produção e do comércio. Principalmente do comércio de longa distância. Onde a remuneração monetária se torna condição fundamental dos negócios. Os metais preciosos, antes entesourados, foram aos poucos voltando para circulação. 

Porém, afirma Annalee Newitz que segundo vários registos, o poeta inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400), era pago em vinho. Ricardo II (1377-1399) generosamente deu a Chaucer um salário anual que incluía um “tonel” de vinho por ano, que era de aproximadamente 252 galões. Segundo a autora, esses salários não serviam apenas para manter os trabalhadores bêbados para que fossem mais complacentes. Mas, na época de Chaucer, as pessoas acreditavam que o vinho trazia boa saúde – o que pode não ter sido estritamente exato, mas foi certamente uma isca numa época em que a Peste Negra estava dizimando as populações da Europa. Levando-se em consideração que o século XIV foi um século de crise na Europa, é bastante plausível que Chaucer tenha recebido parte do seu pagamento em mercadorias. 

CONCLUSÃO

 

O estudo da utilização da cerveja como moeda é, na verdade, parte do estudo mais amplo da remuneração não monetária de trabalhos e serviços. A esse respeito, estamos mais bem dotados de informações referentes às sociedades da Antiguidade Oriental. Em particular, Mesopotâmia e Egito. 

Como procuramos mostrar, essa remuneração poderia ser feita, ao menos em parte, em cerveja, mas geralmente era feita em forma de grãos. Grãos esses que poderiam ser utilizados para se produzir pão e cerveja ou trocados por outras mercadorias. Ao menos, no caso analisado no Egito. Mas com muita probabilidade de acontecer também na Mesopotâmia. 

🍻 tim-tim e até a próxima 🍻

 

🔎 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

Lei da Pureza Alemã e sua história | Surra de Lúpulo #225

 

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Nana Ottoni

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