Nesse episódio do Encontros Selvagens falamos sobre a brasilidade no copo com Bia Amorim, Beer Sommelier, escritora e publisher, e Eduardo Marcusso, do Ministério do Abastecimento, Pecuária e Agricultura.


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Ouça na íntegra:

 

O que é a brasilidade na mesa e no copo?

 

Bia Amorim inicia o debate explicando que essa tema já foi abordado antes, porém como a cultura está sempre em movimento, principalmente no Brasil, um país muito vasto. Por isso, esse tema merece sempre ser debatido e atualizado. Ela convida Marcusso a falar mais a respeito sobre a brasilidade na mesa e no copo.

 

Eu trouxe aqui alguns slides, como eu sou professor e tal, a gente gosta de um slidezinho. Para a gente guiar, trazer bem, fundamentado, fazer uma conversa bem guiada com vocês para tentar contribuir nessa discussão de brasilidade, de terroir na cerveja brasileira” diz Eduardo.

 

Para entender a brasilidade no copo, Eduardo argumenta que é necessário compreender a complexidade da identidade brasileira. Ele passa rapidamente pela construção da identidade nacional, discutindo a busca incessante pela identidade brasileira, e questiona como definir essa identidade de forma autêntica, dado o histórico de miscigenação e os processos complicados envolvidos.

Ele traça um panorama dos intérpretes do Brasil, destacando a rápida evolução do país, que passou por independência, república, urbanização, industrialização e globalização em 150 anos, comparando com o ritmo mais lento da Europa, que levou 300 a 400 anos. Eduardo enfatiza que a construção da identidade brasileira deve se afastar dos modelos europeus e norte-americanos, citando autores que contribuíram para essa construção.

Eduardo menciona a necessidade de superar a visão de que o Brasil é atrasado por ser tropical e miscigenado, uma ideia refutada por Gilberto Freyre. Ele também ressalta que o Brasil nunca foi uma democracia racial, conforme apontado por Florestan Fernandes, que afirmava que uma etnia impôs sua visão sobre indígenas e africanos. O Brasil possui a capacidade de planejar internamente. Com uma população de 200 milhões de habitantes e uma economia forte, é necessário alterar a interpretação de quem é o brasileiro e de onde ele vem. O Brasil precisa dessa conexão com o próximo; é nas interações e nas ruas que o brasileiro se constrói e se transforma.

É crucial, claro, reconhecer que as etnias foram esmagadas pela lógica europeia. Assim, a identidade brasileira é mestiça, tropical, alegre, sofrida, arcaica, conservadora e criativa. Essa fusão violenta resulta em uma cultura radiante e miscigenada, mas também conservadora e racista.

Eduardo vê a construção da identidade brasileira com as bebidas alcoólicas, especialmente a cerveja, e reflete como possuem características universais: são o “pão líquido”, inebriantes e atuam como cimento da união social. Ele gosta dessa ideia da cerveja como cimento da união, onde a identidade brasileira se constrói através da lógica relacional, encaixando-se perfeitamente com a necessidade de interação social.

Eduardo cita o conceito de “lubrificante social” e explora a trajetória etílica e suas matrizes culturais no Brasil. Ele aponta que as preferências etílicas brasileiras são herdadas de suas matrizes culturais: o cauim dos indígenas, a cachaça dos africanos, e a cerveja dos europeus. No entanto, ele ressalta que a associação dos africanos com a cachaça deve ser feita com cuidado, pois essa etnia sofreu enormemente devido à escravidão no ciclo da cana. O cauim, bebida pedagógica e memorial, desempenhava um papel fundamental na transmissão das tradições indígenas, já que não havia escrita.

Um colega perguntou por que não se faz Cauim dos anos 1700 ou 1600, e por que voltou a ser produzido atualmente. Nessa trajetória, a Igreja Católica percebeu que a cauinagem era pedagógica e memorial. Ao eliminar a cauinagem, destruiu-se a sociedade indígena, pois, sem a transmissão oral, o tecido social foi rasgado. Sem escrita, não havia como resgatar essas tradições. Isso facilitou a aculturação dos indígenas, especialmente os jovens que não participaram dos ritos de passagem e, portanto, não tinham vínculos profundos com suas culturas. Esses jovens foram catequizados com mais facilidade, ensinados sobre um único Deus e afastados de suas aldeias.

Os indígenas, que bebiam cauim com teor alcoólico de 5% a 10%, foram expostos a cachaças com 25% a 30% de álcool. Isso os levava a um estado de êxtase muito mais intenso. Há relatos de indígenas que, após tomarem bagaceira de um navio português, ficaram três dias sem conseguir levantar.

No ritual da cauinagem, os indígenas bebiam pausadamente, comiam, dormiam e retomavam o ritual. Já a cachaça, com seu efeito rápido, destruiu o tecido social indígena. A tradição do cauim foi eliminada para impor a visão europeia. A cachaça, apesar de ter alma africana, devido à participação dos africanos no seu processo de produção, simboliza bem a identidade brasileira. A fermentação é de origem indígena, a destilação é portuguesa, e a produção nos canaviais foi realizada pelos africanos. Isso demonstra a complexa confluência de culturas que forma a identidade brasileira.

A produção de cachaça sempre liderou no Brasil até 1924, quando pela primeira vez a produção de cerveja superou a de cachaça. Desde então, a cerveja manteve essa liderança, produzindo cerca de um milhão de litros. Nesse processo, pequenas cervejarias foram prejudicadas por lobbies das grandes empresas que conseguiram diminuir os impostos para as grandes em detrimento das pequenas.

 

Nessa questão cultural que a gente tem que tomar cuidado, a gente tem que fazer essa valorização, esse resgate. E como a cultura é imigra, a cultura é mutável, a civilização brasileira não. Essa está calcada nos seus pilares. E o que vai dar pra ela permanência é essa questão das tradições e das identidades. Por isso é importante resgatar isso, colocar na mesa e no copo. Então só uma brincadeira pra vocês assim, do Brasil dessa mutação, dessa mistura, como é que o Brasil faz isso no prato, né? Você tem a pizza na Itália e a pizza no Brasil.”

 

A indicação geográfica é um processo complicado de se realizar. É necessário ter uma coletividade e uma associação que defenda aquele produto, mostrando por que ele é específico daquele lugar ou por que possui características que o destacam dos demais. No Brasil, já existem mais de 60 ou 70 indicações geográficas, o que demonstra que o trabalho mais difícil já foi feito: resgatar a história, delimitar a produção e iniciar o processo no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Esse processo é demorado e requer apoio de associações, ressaltando a importância do associativismo. Contribuir com uma associação é crucial, pois a indicação geográfica não pode ser pleiteada por uma pessoa física, mas sim por uma marca.

Um exemplo é a indicação geográfica de champanhe, registrada no Brasil e em todos os países para defendê-la. A indicação geográfica é relevante tanto internamente quanto externamente. No Brasil, temos um reconhecimento mútuo com o México: o México reconhece a cachaça, e o Brasil reconhece a tequila. Isso exemplifica a importância do reconhecimento bilateral. Outras indicações incluem conhaque e vinho do Porto.

No Brasil, há exemplos específicos, como a jabuticaba de Sabará. Se uma cerveja é feita com jabuticaba de Sabará, ela já carrega a identidade brasileira, pois é necessário comprar dos agricultores que seguem o plano de manejo e são associados dos produtores locais. Isso traz o território e a cultura para dentro do comércio e da bebida. Outro exemplo é o abacaxi de Novo Remanso. Eduardo menciona Boituva, sua cidade natal, que possui uma variedade específica de abacaxi chamada boituvo. Ele expressa o desejo de fazer uma cerveja com essa fruta, destacando que a identidade geográfica adiciona toda a história e cultura ao produto, fortalecendo os produtores locais e transportando essa tradição para o copo.

Ele menciona também a uva e a manga do Vale do São Francisco e o guaraná nativo da terra indígena Andirá-Marau, que é específico daquela região e etnia. Tudo isso é regulamentado pelo INPI, com regras e apoio das associações. Existem mais de 670 indicações geográficas no Brasil que podem ser incorporadas nas cervejas, trazendo identidade, cultura e tradição para o copo e a mesa. Um exemplo é a linguiça cuiabana, que pode ser harmonizada com uma cerveja específica de Mato Grosso do Sul, agregando todo esse processo de harmonização e desenvolvimento da Escola Cervejeira Brasileira.

Para ele, essa área é pouco explorada, mas possui um potencial gigantesco. A indicação geográfica da cachaça é um exemplo importante: o território da cachaça é o Brasil inteiro. Um destilado de fermentado da garapa de cana só pode ser chamado de cachaça se produzido no Brasil. Se alguém fizer o mesmo processo na Indonésia, terá que usar outro nome. Cachaça é um produto exclusivamente brasileiro.

 

Vale tudo o que está no copo?

 

Eduardo considera que a questão organoléptica, ou seja, o sabor e os aromas, é fundamental. Ele observa que poucas pessoas são viciadas em chá de boldo, embora tenha sua função e seja bom. O gosto é uma construção cultural. No Brasil, há a popularidade das IPAs e de cervejas extremamente alcoólicas e ácidas. Isso reflete uma construção e uma forma de venda, sendo importante que o produto seja bem feito e apreciado pelos consumidores.

Para Marcusso, o que realmente traz a ideia de brasilidade no copo é a história por trás do produto. Ele exemplifica com a cerveja Weizenbier (Vaz): os alemães a produzem há mais de mil anos, tornando difícil competir diretamente com eles. No entanto, se uma Weizenbier for feita com identidade e história, como usando trigo do cerrado brasileiro, com apoio da Embrapa e das comunidades locais, ela ganha um valor especial. A indicação geográfica do trigo do cerrado adiciona história e autenticidade ao produto, facilitando sua venda e aceitação.

Ele acredita que é necessário seguir um caminho paralelo: massificar a produção e não ficar apenas nos nichos específicos. A diversificação é crucial para alcançar um mercado mais amplo. Marcusso sugere que, com uma reforma tributária e apoio das associações para benefícios aos pequenos produtores, é possível tornar a cerveja artesanal mais acessível. Ele imagina um cenário onde uma cerveja de qualidade possa competir na prateleira com preços acessíveis, tornando-se uma escolha viável para um público maior.

 

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Nana Ottoni

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