No programa de hoje, vamos falar sobre um assunto cotidiano no Brasil: botecos e botecagens, e já vamos citar o nosso querido amigo filósofo, Preá, que contou pra gente da sua visão de que todos os botecos são diferentes. No ensejo, queremos falar deste lugar onde nos encontramos para conversar, fazer amigos e nos reconectar com outras pessoas. Ouça este episódio do podcast Surra de Lúpulo na íntegra:

 

Botecos e Botecagem

Foto de Ligia Skowronski para Veja SP

Antes da gente começar a conversar sobre o tema, é importante trazer uma definição do nosso objeto de estudo, vamos chamar assim, do nosso palco, desse lugar que nós vamos explorar. E para começar, o que é o botequim? 

Primeiro, a palavra botequim vem da união de duas nações, da palavra portuguesa, botica, com a palavra espanhola, bodega. Adoro a bodega, inclusive é uma palavra que eu gosto muito. Essas duas palavras vieram da mesma origem grega, que era apoteka, que significa algo como um depósito, que o nosso querido Sérgio Barra gosta muito de falar dos secos e molhados e tudo mais. 

Tradicionalmente, as boticas ou bodegas eram mercados. Assim, as pessoas passavam nas feiras, faziam suas compras, tinha que complementar algo, passava lá e faziam, completava a compra da semana, algo assim. Até o momento que os proprietários começaram a servir petiscos e bebidas para quem passasse por ali. Dessa forma, de um lugar de passagem, virou um canto de pouso. onde as pessoas poderiam ficar um pouco mais e conversar. 

No Brasil, o primeiro botequim aconteceu em Minas Gerais, na cidade de Andrelândia. O Bar do Dito Nable foi fundado em 1882, há 142 anos. Mas a moda do botequim e botecagens pegou mesmo no Rio de Janeiro. Ali nos bairros da Saúde, Santo Cristo e Urca. Até indica que o Bar Urca foi o primeiro do Rio. O mesmo bar da Urca que virou a mureta da Urca. Isso não foi encontrado em documentos, mas é uma possibilidade.

O botequim como estabelecimento, aqui no Brasil é tão forte que faz parte da nossa cultura. Talvez da mesma forma que os cafés pertencem à cultura francesa e os Pubs, à cultura inglesa. Para nós, os brasileiros, para a escola brasileira de cerveja, nós estamos falando dos botequins. 

Nós já tratamos desse tema algumas vezes. A mais marcante foi quando o convidado Preá participou no Surra de Lúpulo #166, o Boteco do Surra com o Preá, onde ele consegue definir o botequim, de uma maneira muito clara e romântica até: Um lugar onde tantos iguais se reúnem.

 

Lud: Pra mim, Botequim é magia. Coisas incríveis acontecem no botequim. Acho que o botequim é tipo uma igreja, uma sinagoga, uma mesquita. Lugar de respeito, onde as pessoas vão se conectar com as suas entidades superiores. Nem que essa entidade superior seja o seu eu meio bêbado ou meio bêbada. Eu tive ótimas ideias em Botequins e muitas vezes desejei que houvesse uma gravação daquelas tardes ébrias onde conversava com os amigos sobre os planos mais ousados com a leveza irresponsável de quem está se despindo de todas as amarras e filtros sociais.

Não estou fazendo da minha definição ao botequim um ode à bebedeira, mas na verdade é uma declaração de amor à reunião de amigos, os amores que estão ali e zero preocupados se o aroma e o sabor da cerveja estão no lugar correto do estilo. Mas que querem contar a melhor história da semana, que querem ouvir um sucesso ou uma tristeza, pra saber. Botequim é lugar de guardar troféus. Quem nunca pediu um engradado vazio e foi se vangloriando que ele foi sendo preenchido com as garrafas, cada uma que tinha sido bebida. Botequim pode ser transformado na copa da casa da sua tia.

Quando você se senta à mesa e joga cartas ou dominó com seus amigos, por exemplo. Botequim é lugar de competição, quando você compra as fichas para jogar na sinuquinha-mata-mata de bolas azuis e vermelhas. Botequim é lugar de silêncio também, quando você só quer sentar no balcão e encarar apenas o cara que está do outro lado para pedir a sua cerveja. Então, assim, para mim, num botequim cabe a vida inteira. Isso, para mim, é um botequim.

 

Leandro complementa explicando sua visão do que seria um botequim:

 

Leando: A minha, com o maior prazer, a minha definição de botequim, ela começa com esse lugar democrático, onde você, assim, atrai qualquer pessoa com predisposição pra encostar ali e trocar uma ideia. Ou não, ou não trocar uma ideia. Ou ficar só passando, como você disse, sozinho ali, encarando somente o barman ali, quem tá servindo a cerveja ali atrás, o garçom. E que ocorre ali uma aleatoriedade, porque você pode chegar sozinho e sair com o seu melhor amigo. Sair com o amor da sua vida, porque basta tá passando uma notícia, um jogo de futebol, ou alguém passar por ali e te apresentar pra alguém. E isso tudo vai desencadear em algo que você não planejou.

Então o Botequim, ele dispara pra mim um evento onde você não tem ideia do que vai acontecer depois. Você pode até ter expectativas, mas de fato você não tem ideia. E o que eu acho mais legal é que ele até pode ser um botequim limpo, mas não é obrigatório ser limpo, sabe? Ele pode ser uma portinha, como no programa com o Preá eu citei. Como existem tantas aqui no Rio de Janeiro, como existem tantas no Brasil afora, lá em Minas, no bairro de Santa Tereza, tem também vários botequins que são portinhas, né? Praticamente era um depósito que começou a vender e botou mesa do lado de fora. Porque estar do lado de fora, para mim, é uma característica muito real do botequim, principalmente aqui no Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Eu não sei como é em outros estados. Mas estar fora da loja é um outro charme. Você está respirando a rua, está ocupando a rua. Está, às vezes, sendo interrompido por quem está passando. E essa interrupção pode ser um novo ponto de contato que vai criar uma história. História que pode ser engraçada, história que pode ser marcante, mas é algo que está acontecendo, como eu falei lá no começo, sem planejamento. Então, pra mim, o botequim tem muito desse lance de vamos dar só um pulinho ali e trocar uma ideia. Às vezes, sem compromisso, é que saem as grandes ideias geniais, como você falou. Por estar sem compromisso, por estar sem defesas, saem as grandes ideias geniais. Vamos só dar um pulinho ali, pô, e dar uma relaxada, e aí você termina cantando Psycho Killer. Ou, sendo mais brasileiro, impossível, Evidências. Sai cantando Evidências. Isso, pra mim, é o botequim, é esse espaço democrático.

 

O que é botecagem e como você faz a sua botecagem?

 

Foto de Clayton Vieira para Veja SP

Leandro diz que seu estilo de botecagem mudou. Antigamente, ele praticava em pé e detestava sentar à mesa de botequim. Era aquela pessoa circulando com uma copo na mão, porém isso mudou com o tempo. Atualmente, pratica sua botecagem sentado e geralmente marcado com antecedência com amigos. A espontaneidade perdeu seu lugar e, hoje em dia, bebe de forma muito mais consciente.

 

Leandro: Então toda a espontaneidade do vamos ali, vamos dar um pulo, vamos ver o que que rola, vamos tomar só uma real… Só uma, responsável, salto temporal, isso não existe mais, pra mim. E falo com tristeza, porque tinha um sabor muito bom aqui, essa brincadeira. Só que hoje virá mesmo essa coisa do, pô, então vamos tomar um chope, vamos? Pô, quando? Ah, lá na sexta-feira a gente vai tomar um chope, não sei o que tal. Pronto, já agendamos, já sabemos o lugar.

 

Já a Lud pontua que Leandro tinha um estilo de botecagem muito diferente do seu anterior. Explica não ser avessa a sentar, então sempre lidou bem com sentar no botequim, porém a mesa nunca era fechada. Sempre tinha espaço pra alguém chegar e complementar. Seja para jogar buraco, fazer campeonato e ir mudando as pessoas da mesa. Para ela, o boteco não era um ponto de contato ou fechamento, mas sim de aproveitar o espaço.

 

Lud: E também, gente, vamos entender que o botequim na zona sul do Rio de Janeiro, o botequim na zona norte do Rio de Janeiro, o botequim na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, é muito diferente. Assim como deve ser muito diferente. O botequim em São Paulo Capital, na Baixada Santista, em BH ou em outra cidade menor ou em outro lugar do Brasil, são completamente diferentes.

Qual é o papel da cerveja nos botequins?

 

Foto de ELEVATE no Pexels

Lud: Então, eu acho que a gente vai falar de cerveja, porque a gente gosta de cerveja, mas eu acho que o botequim é o lugar da bebida, né, cara? E às vezes a bebida mais barata do botequim não é a cerveja. Pode ser a dose da pinga, pode ser a dose de uma outra bebida mais forte até que enfim, né, alcance mais rapidamente as pessoas. Porque às vezes as pessoas no botequim têm pressa. Não é pressa de sair do botequim, mas é pressa de alcançar a sua entidade superior. Acho que o papel da cerveja, ele é um complemento. A gente mora num país muito quente, etc. Mas eu acho que a cerveja, no final, no Botequim, para a grande população, né? Não é para o jovem que vai lá tomar responsável. Mas, assim, eu acho que para a grande população a cerveja é mais uma das bebidas. Eu acho que muita gente chega para tomar coisa mais punk, assim. E às vezes para fazer uma refeição, né? Botequim costuma ter refeições mais acessíveis.  E geralmente aquela comidinha que fica ali na estufa, né? Que você dá aquela olhada ali, é uma carne assada, é um ovo rosa…

 

Leandro concordo com os pontos apresentados por Lud, sua companheira de botecos, principalmente no que se fala sobre a comida. Os valores acessíveis realmente são atrativos para quem ainda por cima, gosta de beber. Entretanto, discorda em partes com relação ao papel da cerveja no botequim e nas botecagens.

 

Leandro: A cerveja, para mim, é muito associada à conversa. Ela dita o ritmo da conversa, ela mostra que um papo ainda pode render muito mais quando alguém grita décima e uma, sabe? Quando alguém pede uma décima e uma, significa que aquele papo ali está longe de acabar, meu amigo. Mesmo quando alguém pede a saideira, está pedindo só a primeira saideira, porque a gente tem a primeira saideira, a segunda saideira, a terceira saideira. E aí vai, então, a cerveja, ela é mútua, eu vejo ela menos associada a esse objetivo da camada superior, né, da ascensão espiritual, é mais associada à companhia, à conversa.

 

Onde a cerveja é protagonista, cabe a botecagem?

 

Foto de jcomp

Lud: Se fosse pra eu chutar um lugar na qual a cerveja é a principal, seria no menina dos olhos. E aqui no Rio, eu pensaria na Hocus Pocus por uma característica muito jovial, sabe? Mas ao mesmo tempo, me falta o glamour do botequim. Me falta uma mesa mata-mata, me falta um jogo de buraco.

 

Leandro acredita que falta democracia e desburocratização na forma como as bebidas são servidas nos estabelecimentos. A ideia de poder pedir o que se deseja sem a necessidade de apresentações ou associações específicas com marcas é algo que pode trazer mais naturalidade e liberdade para o consumidor. Embora a diferenciação e a degustação especializada possam ser apreciadas por quem é apaixonado por cerveja, a simplicidade e a igualdade no serviço podem tornar a experiência mais acessível e inclusiva para todos.

 

Leandro: Mas acho que isso não é uma botecagem é bom de um outro jeito olhando sem juízo de valor. Não quero dizer que um é ruim e o outro é bom, mas é completamente diferente, porque ele passa a exigir planejamento, ele passa a exigir conhecimento ou que alguém pare pra te explicar. E aí a naturalidade daquela aleatoriedade vai acabando, vai secando, né? Então, eu estive recentemente no Brewteco, que o nome diz que é um boteco de cervejas, né? Brewteco. Eu estive no Boteco da Tijuca. O clima é até próximo de um boteco, boteco um pouquinho melhor, arrumadinho, né? Tipo, são os botecos cariocas atualmente, que não são os botequins tradicionais, são umas coisinhas mais banhadas, mais vestidinhas. Mas ele não era democrático, zero democrático. E tinha uma carta de cervejas muito legais, mas eu percebi claramente que o garçom não sabia do que ele estava vendendo. Ele não entendia, porque eu perguntei se tinha determinado estilo, ele precisou consultar pra ver se achava algo daquele estilo, sabe? Então, ele não conhecia o que estava plugado no dia, começar por aí. E ele não entendeu muito bem. E, por um lado, isso seria algo muito mais próximo de um botequim mesmo, né? O garçom não está tão preocupado em conhecer se é puro malte, se não é puro malte, se tem milho, se não tem milho. É cerveja, meu amigo. É cerveja? Leva cerveja.

 

Você consegue pensar em um lugar de cerveja independente que seria um botequim?

 

Lud acredita que existe a possibilidade da cerveja especial entrar em certos ambientes, porém, ela não acredita que a cerveja especial vai ser a atração principal e aí ela pode se beneficiar do misturador do blend. Ela e Leandro debatem sobre as diferenças do boteco e do barzinho enquanto pensam na possível introdução de cervejas especiais no botequim. 

 

Leandro: Quando você se predispõe a esse nível de serviço, sommelier, ele é muito distante do boteco. Ele tem um compromisso muito maior. Então sim, a pessoa tem que saber o que está vendendo. É aquilo que a Carol, a Oda, a Bia já falaram aqui tantas vezes. Que tem que ter treinamento quase que diário com a equipe, o que a gente tá servindo, o que tá bom, o que não tá bom etc. Então tem essa distância entre o que é o boteco, que não tem esse compromisso, como o Preá mesmo falou, ninguém chega num boteco e fala pra tirar o molho da moela. E o outro lado é, tem um nível de serviço que é pra atender plenamente o cliente, né?

 

Outro ponto levantado é sobre a Escola Brasileira de Cerveja, que acaba não entrando nos botequins de certa forma.

 

Lud: Eu acho que a gente não consegue definir uma escola brasileira de cerveja sem respeitar como o brasileiro consome cerveja. Então, se a gente não olha para isso e fala assim, é desse jeito, e aqui está a beleza disso, a gente vai tentar sempre impor algo baseado ou nas nossas origens, que o brasileiro não admira, que o brasileiro não respeita. que sejam nas origens dos povos originários, que sejam nas origens pré-colônia, mas que a gente não reconhece como nossa. É um erro nosso? É, mas é um fato, a gente não reconhece como nossa. Ou seja, importando de algum lugar, que seja da tendência mundial atual, que é os Estados Unidos, ou da história eurocentrista, que é a Europa. E aí a gente vai buscar hoje um lado ou de outro. Enquanto a gente estiver fazendo isso, a gente não respeitar o como a gente consome, a gente não vai conseguir nos reconhecer na escola brasileira. E, ao mesmo tempo, eu vejo muita dificuldade de distribuição de produto baseado só em lojas especializadas, porque ela fica vulnerável a qualquer crise, a qualquer problema. Então, se isso não cai numa capilaridade muito grande que, em qualquer lugar, como a Bélgica, pode ter uma cerveja maneira, não precisa nem ser a melhor do mundo, a melhor do Brasil. Mas sabores diferentes de cervejas, estilos de cervejas diferentes, eu vejo muita dificuldade do mercado ir além dos tais 2% ou a gente criar essa cultura. Eu acho que esse talvez seja o nosso grande desafio atual, sabe? Popularizar, democratizar realmente a cerveja. Cervejas independentes, né? Porque a de massa já é de massas, o nome já diz.

 

A primeira cervejaria brasileira – Programas históricos | SdL #218

 

🍻 tim-tim e até a próxima 🍻

 

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Nana Ottoni

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