No episódio de hoje do Surra de Lúpulo, vamos falar sobre antropologia e cerveja, porque vocês não imaginam como esses assuntos andam de mãos dadas. Neste programa, estamos com Paula Pinto e Silva, que é cientista social, mestre doutora em antropologia social pela USP e professora de antropologia e consumo na pós-graduação da ESPM, de São Paulo. Ouça na íntegra:

 

 

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Antropologia e cerveja

 

Como a Antropologia entende a alimentação?

 

Paula: Na verdade, eu acho que prefiro até começar dizendo o que é antropologia. Como você trouxe aqui, tem muita gente que não sabe, né? Eu brinco que quando minhas filhas eram pequenas, eu chegava na porta da escola e aí as mães me perguntavam o que eu fazia, eu falava que era antropóloga, a mulher dava um passo pra trás e aí ela não sabia se me cumprimentava, se dizia. Teve uma que uma vez falou, nossa, você é a primeira antropóloga que eu conheço na vida. E eu me sentia um astronauta, eu me sentia uma perfeita astronauta. O desconhecimento é muito grande. Então, eu começo a falar um pouco assim, que eu acho que é legal também, que as pessoas entendam que a antropologia é uma ciência, estuda seres humanos, e a característica da antropologia, diferente da psicologia, por exemplo, é que ela estuda seres humanos em grupo. Tudo que as pessoas fazem em grupo interessa para os antropólogos. O que as pessoas fazem sozinhas, eu falo, o problema é seu. O problema é seu, da sua consciência, do seu espelho. A antropologia, ela está Interessada nessa repartição de valores entre pessoas. Então, é isso que os antropólogos vão estudar. E o que a gente faz em grupo? Tudo. A vida humana é feita em grupo. Seres humanos existem em grupo, eles nascem em grupo. Morrem em grupo. Significa falar que a gente nasce em grupo, ou morre em grupo. Quando uma mulher fica grávida, embora ela mesma vá conduzir a sua gestação, é a sua cultura particular que vai determinar se ela vai ter que tomar ácido fólico, ou se ela vai fazer jejum, ou se ela vai, sei lá, fazer resguardo. É a cultura que vai determinar. Então o que a gente vai dizer é, aquele bebê já está sendo gestado, gerado dentro de uma cultura. Já está sendo os valores ali sobre o que é um bebê, o que é uma grandeza, já estão sendo partilhados. A mesma coisa quando a gente morre. Cada cultura vai dizer de que maneira você vai ter que ser enterrado, se você vai ter missa de sétimo dia, se você pode ou não ser cremado ou não, se você vai ser enterrado uns sete palmos abaixo da terra ou não. Então, ponto um, os seres humanos vivem em grupo, significa que a gente partilha com alguém valores. Esses valores a gente chama de cultura. E por que eu começo falando isso aqui, num lugar que a gente vai discutir cerveja? Porque do ponto de vista antropológico, tudo que a gente faz na vida é mediado por um valor cultural. O ato da gente beber cerveja, ou não beber, ou beber no copinho, ou beber de outro jeito, isso tudo é cultura. Então não tem como a gente querer, a gente não podia começar já falando de cerveja sem pensar que a antropologia vai estudar por que as pessoas fazem o que elas fazem. Então não me interessa saber qual é a cerveja que elas bebem. Me interessa saber por que elas bebem. E, num determinado momento, é por que bebem determinada cerveja. Por que elas migram de uma coisa para outra? Aí, claro, podemos discutir a partir de um ponto de vista de sabor, podemos discutir a partir de um ponto de vista de saudabilidade, mas o antropólogo não está interessado nisso. O antropólogo está interessado no que a gente chama de razões inconscientes pelas quais as pessoas fazem suas escolhas. E no caso da cerveja, não vai ser diferente. A gente vai buscar essas razões inconscientes que, de alguma maneira, vocês até vão tentar definir conscientemente as razões pelas quais a gente deve buscar uma ou outra cerveja. Essa é a função do sommelier, essa é a função dos orientadores, digamos assim, do produto. A função do antropólogo é dizer assim, beleza, mas eu não consigo distinguir essas notas que você coloca aí nesse, digamos. A maneira pela qual eu tenho que beber, eu não consigo distinguir se isso é de barril, se isso é de malte, eu não sei, eu não consigo. Então, por que eu bebo? Por que eu escolho determinados rótulos? Se eu não sei distinguir isso que você está dizendo, é aí que entra o antropólogo para mostrar que as pessoas fazem essas escolhas também buscando o que a gente chama de símbolos. Então, as pessoas vão beber ou vão comer, ou vão se vestir, ou vão escolher o seu carro, não só pelos motivos pragmáticos. Ah, eu escolhi esse carro porque ele tem tantas cilindradas e faz tantos quilômetros por não sei quantos litros. Não, na verdade, você pode ter razões que a gente vai chamar de pragmáticas, que são essas mais concretas, mas no fundo, no fundo, tem alguma coisa que a gente chama de razão simbólica. E essa é a função da antropologia, é estudar a nossa razão simbólica. Ou seja, quais são os símbolos que estão por trás e o que esses símbolos querem dizer para as pessoas. Eu acho que a gente depois conversa mais especificamente, mas quando vocês falam, vocês criaram uma nomenclatura para a cerveja. Essa nomenclatura também é simbólica. Ou seja, ela quer diferenciar, ela quer diferenciar a cerveja do resto. Então, isso não tá errado, tá? Tô só dizendo como é que a gente interpreta essa nomenclatura, como é que a gente interpreta os rótulos, né? Ou como que a gente interpreta o desejo das pessoas.

Em suma, a antropologia é essa ciência que estuda os grupos, os seres humanos em grupo, quando eles estão em grupo. E a antropologia, ela vai estudar as pessoas por aquilo que a gente vai chamar de concretude, né? As coisas concretas da vida das pessoas. A antropologia vai estudar comida, a antropologia vai estudar moda, a antropologia vai estudar as festas, os rituais. Esse é o material da antropologia. É por meio disso que a gente vai chegar no que a gente chama de pensamento inconsciente. Então… eu preciso pegar coisas concretas, eu vou lá estudar alimentação brasileira para daí entender por que as pessoas comem aquilo que elas comem. Se eu chegar para você e perguntar por que você come o que você come, você vai falar, eu estou com fome, eu aprendi, eu como desde que eu nasci, nunca pensei sobre isso. É justamente isso que interessa o antropólogo. Aquilo que a gente faz, você tem que saber por quê. Aquilo que a gente faz desde que eu nasci, desde que, sei lá, o tempo é tempo; ninguém diz por que que você come, sei lá, aqui no Rio de Janeiro por que vocês comem feijão preto, vocês sabem? E aqui em São Paulo também, a gente chama de carioquinha o nosso feijão cotidiano, que também é chamado de mulato e também é o feijão marrom. Então, olha só, essa não é uma escolha da natureza. Ah, é porque no Rio de Janeiro tinha só a espécie preta e aqui tinha só a espécie marrom. Não, essa é uma escolha da cultura. Em algum determinado momento, que a gente já perdeu do tempo, escolheu-se no Rio de Janeiro comer cotidianamente feijão preto. Aqui pra nós, em São Paulo, em Minas Gerais, em grande parte do país, feijão preto é feijão de feijoada. E se você perguntar para alguém aqui em São Paulo, ele vai dizer que feijão preto é muito mais pesado. Então, assim, isso que eu acho que é o interessante da antropologia, porque a gente não vai ficar discutindo quem é que está certo, que feijão é pesado. A gente quer entender qual é a percepção das pessoas. Se a gente chama o feijão marrom de carioca, carioquinha e mulato, significa que nós estamos fazendo correlação aqui. Nós estamos definindo, inclusive, que os cariocas são mulatos. E é isso, gente. Quando o antropólogo olha, ele não está interessado no feijão em si. Ele está interessado nos símbolos que o feijão carrega. Ele está interessado em por que a gente usa essas palavras que a gente vai dizer. Mas eu aprendi essas palavras aqui a vida inteira. Eu sempre usei e nunca achei que eu estava trazendo alguma outra coisa. Mas tá, estamos. então, quando a antropologia escolhe estudar alimentação a gente está buscando esses porquês das nossas escolhas que não são acidentais não são individuais a gente vai dizer, como? Porque eu prefiro. Ótimo, você prefere dentro daquilo que sua cultura te permite fazer porque se você disser que vai misturar feijão com estrogonofe…

A questão é que quando você faz essas escolhas, imediatamente isso se torna algo que a gente chama de constituinte da sua identidade, ou seja, quando você vê um cara pondo ketchup na pizza, você olha e fala, você é do Rio de Janeiro? De São Paulo você não é, né? E pode parecer uma piada, mas isso não é uma piada. Essa é a maneira pela qual seres humanos constroem sua identidade, ou seja, na hora que eu defino fronteiras de diferença para o outro, para outra pessoa. Então, se a gente chegar às duas num restaurante, eu e a Ludmilla, e a gente olhar lá os dois feijões, não é quarta-feira, eu vou pegar feijão marrom. Ela vai direto no feijão preto. E na hora a gente já vai estar mostrando que somos diferentes. A comida também é um veículo de construção de identidade. É isso que a antropologia entende. Que a alimentação constrói identidade, ela contorna a identidade e ela projeta a identidade. Quando eu, por exemplo, entro em um restaurante que eu não conheço, quando eu quero experimentar comidas que não fazem parte do meu cotidiano, eu estou projetando para o mundo algo que eu quero ser. Eu quero ser aberta, eu quero ser moderna, eu quero ser vanguarda, eu quero ser uma experimentadora. É isso que eu falo quando eu digo que eu vou descobrir um restaurante vietnamita. Descobri aqui, outro dia, um [restaurante] coreano, que eu entrei e tudo estava escrito em coreano, cardápio em coreano, eles só falavam em coreano. Aí eu e meu marido,  a gente falou, vocês preferem que a gente vá embora? Sim. A gente foi embora. O que? Um restaurante basicamente secreto, sei lá, mas assim, tudo bem, entendeu? A gente entendeu que estava no lugar errado.

A antropologia, ela olha pra alimentação buscando, primeiro, por que que as pessoas fazem essas escolhas, a gente olha no tempo, ou seja, quando é que essas escolhas foram feitas, a despeito do que a gente quer. Então, no caso brasileiro, no caso da alimentação brasileira, a gente tem as primeiras escolhas alimentares, né, que vão definir ali um sistema que a gente vai chamar um sistema alimentar brasileiro, em 1530, gente. Em 1530 a gente já tinha comia aquilo que comemos hoje, e tem gente que fala pra mim ah não, não é possível, a gente é muito inovadora, a gente mudou muito. Não mudou não, a gente mudou quando a gente tá na capital, quando a gente tem dinheiro, e aí a gente tem introduções novas.

 

E os mitos cervejeiros, do tipo cerveja de milho é ruim?

 

Paula: Acho que você trouxe uma coisa muito legal, que você chamou de mito. Qual é, do meu ponto de vista, o equívoco, ou sei lá, o problema da gente chamar de mito? É que, em princípio, ele tende a ser mentiroso, ou não é verdade, não é verdadeiro. E a visão da antropologia é justamente que se é verdade para aquelas pessoas, a gente deveria entender por quê. E não tentar derrubar, a não ser que você esteja falando de uma verdade cientificamente comprovada, né? E de novo, até essa comprovação científica vai ter limitações, porque a gente pode pegar, por exemplo, a nutrição, que é uma ciência, e que tem comprovações científicas sobre diversas coisas. E aí, de tempos em tempos, ela revê a sua comprovação científica. ovo pode, ovo não pode, uma clara, menos uma, agora cinco, agora dez, come 50 quilos de ovo e está tudo certo com você. Isso é uma comprovação científica, só que ela é modificada a cada novo paradigma que a ciência encontra. Quando eu não tenho isso, quando eu tenho exatamente o que você falou, Lud, que é a crença das pessoas. A crença das pessoas para um antropólogo é verdade, e não porque ela é ciência, mas porque é naquilo que eles acreditam. Então, tem amor com ponta de faca? Claro que sim, porque o que eu ganho mostrando pra ele que a minha verdade é certa? A gente tem uma palavra na antropologia que é uma palavra comprida e feia, mas que eu adoro, que é o etnocentrismo, que é quando você coloca a sua etnia, os seus costumes, acima do costume do outro. A gente tende a fazer isso direto com tudo aquilo que a gente não gosta, acha nojento, esse país aí é fedido, essas pessoas não tomam banho, a gente faz isso o tempo inteiro. A gente também vai fazer isso quando a gente tem determinados gostos. E a gente vai tentar dizer que você come, sei lá, você come cabra. Ah, isso aqui não deve ser bom. Ou então significa que você está no atraso. Como assim estou no atraso? Essa é a região do cabra. Eu como cabra desde que eu nasci. Por que a carne de vaca é melhor do que a carne de cabra? E aqui não estamos discutindo calorias e não é isso que a gente está falando. Acho que é isso que você trouxe, eu acho muito importante, porque quando a gente fala de comida e bebida, nós não estamos falando de produtos, nós estamos falando de formas das pessoas se entenderem no mundo. A comida e a bebida expressam maneiras das pessoas estarem no mundo. A comida e a bebida expressam identidade. Então, se ela está falando daquela água daquele lugar, ela está falando sobre si, menos do que sobre a cerveja.

 

O que você está trazendo para a gente é que a cultura não é racional, ela é uma expressão, mas ela não é racional. Isso é construído. Mas a publicidade vira uma disparadora de cultura, ela vira um ator determinante dessa formação de signos, e aí falando em signos, signos, símbolos, significado, então a partir do momento que a publicidade repete 10 mil vezes que a água de Agudos isso e aquilo…

 

Paula: Sim, na verdade, assim, a cultura está sempre sendo moldada, sempre. Mesmo que a gente ache que, como você fala, cariocas, vamos pegar a coisa do feijão, em determinado momento ficou assim. Não era sempre assim. Não foi sempre assim. A gente começa a comer arroz, feijão, por exemplo, a partir do final do século XIX. Antes existia feijão, farinha, carne seca, que, aliás, é o nome do meu livro, mas o arroz é tardio, e essa divisão do feijão preto, feijão marrom, etc., vai ficar no século XX, vai virar essa defesa de identidade. O que significa que, na primeira lição do dia, tudo pode mudar. A cultura muda o tempo inteiro. Ela é dinâmica, ela é modelada, ela modela os homens, ela molda os seres humanos, porque ela nos dá esses contornos, mas ela também é moldada pelos seres humanos a partir do momento em que, por exemplo, a gente resolve ir contra a cultura, cortar a nossa relação com determinados padrões culturais. Então a gente também age na cultura, não é que a cultura só age sobre nós. É o ovo da galinha o tempo inteiro. A publicidade é parte da cultura. E quando ela veicula algo que cola, que faz sentido para a cultura, aquilo vai colar mais ainda. Quando ela veicula coisas que não fazem o menor sentido para aquela cultura, pode ser bombardeada. Eu sempre falo isso para os meus alunos. Bombardeia e vai perder dinheiro. Ou você encontra aí as boas campanhas, as boas ideias. Em geral, elas estão muito pautadas em crenças culturais. Então, aí, a água, a gente teria que ver qual é. Mas a pureza da água é absolutamente importante para o brasileiro, para pensar a sua relação com a água, com aquilo que bebe, etc. Então, você falar disso e colocar isso aliado à cerveja, que é algo que ele já toma, que é algo que ele já conhece, etc., você está fazendo, trazendo quase como uma verdade de fora, ou uma verdade como você chamou, consciente, intencional, mas que vai grudar porque a gente já está preparado para aquilo. Tem outras que você pode ficar tentando e não vai rolar. Quer ver uma que eu gosto? Só para te dar um exemplo. Protetor solar. O mundo inteiro sabe que protetor solar é importante, porque protege, conhece, blá, blá, blá, blá, blá. Os índices brasileiros de uso de protetor solar é um dos menores no mundo e o índice de câncer altíssimo. As pessoas não fazem a relação porque as pessoas são burras? Não, porque as pessoas gostam, brasileiros gostam do sol, então nós temos um problema. É como se você dissesse assim, a gente gosta do sol, como é que o sol vai fazer mal? Deixa a gente pegar uma corzinha, depois eu passo protetor solar. Pode investir quanto você quiser em campanha, não cola, enfim. Tem outros exemplos depois pra dar, mas eu acho que vocês falaram, é muito legal, porque não é tudo o que cola.

 

Comida e bebida andam juntas? 

 

Paula: Bom, a antropologia olha pra comida, na verdade a gente olha pra alimentação, que é um sistema. Um sistema que mistura comida, bebida, jeito de cozinhar, jeito de comer, jeito de produzir. É um sistema mesmo, a gente olha tudo junto. Não tem como a gente pensar em comida, a comida não tá solta. As pessoas não comem primeiro, não comem aleatoriamente. Elas comem com alguém ou não, ninguém. Em determinadas circunstâncias comem uma coisa ou outra e, obviamente, combinam ou descombinam, depende do ponto de vista, bebidas juntas. Então, para nós, a bebida é parte do que a gente chama de sistema alimentar. Não existe um sistema bebimentar. É um sistema alimentar que junta comida e bebida. É como se tivesse uma linha de comida e uma linha de bebida. Por que é importante a gente pensar isso? Quando a gente vai olhar para as pessoas, por que elas fazem o que elas fazem, do mesmo jeito que a gente escolhe comidas, tem comidas que a gente não come sozinho, certo? Acho que você, né, tudo bem, você pode sair pra comer uma feijoada sozinho no dia da semana e tal, mas se você for comer uma feijoada no sábado sozinho vão achar que você tá um pouco deprimido ou tá sem amigo e, afinal de contas, é sábado vai comer uma feijoada, é bom que você tenha companhia. A mesma coisa vale pra bebida, então, tem bebidas que é quase proibido, digamos socialmente, beber sozinho. E a gente vai ter que entender, inclusive, por que aqui no Brasil a gente tem essas características e em outros contextos isso não faz o menor sentido. Dificilmente a gente vai abrir uma garrafa de vinho para beber sozinho. Quando a gente abre uma garrafa de vinho, você tem companhia. Você pode abrir uma garrafa de cerveja para beber sozinho, mas aí depende. Se for uma garrafa grande, você não vai beber sozinho, você vai ter mais gente, então você vai ter uma garrafa pequena, você vai ter uma lata. No fundo, quando você fala da comida e bebida, ela sempre tem um casamento. Eu acho que o interessante de pensar nessas cervejas independentes, quando você fala da harmonização, para mim o interessante é pensar, digamos, a origem da cerveja no Brasil, que não é a cerveja independente. E qual era o casamento que nos foi ensinado? Ou, Leandro, vai, o casamento de comidas, o sistema que estava ali dentro dos limites da cultura.

Cerveja, eu estou falando do passado, não das independentes, a cerveja ia até um ponto. Chegava num determinado momento, numa determinada classe social, num determinado tipo de comemoração, num determinado tipo de comida, não entrava, não entrava. Então, tem uma transposição para ser feita, tem um processo diferente. Não é que a gente sempre achou que cerveja combinava com tudo. a gente permitia que a cerveja entrasse em determinados contextos, mas quando era uma comemoração muito especial, vamos então abrir um vinho, tá? Vamos então a uma champanhe. Até hoje, né, gente?

Eu vejo que a gente aprendeu a tomar cerveja a partir de uma outra perspectiva, que foi uma perspectiva de cultura de massa, que chega assim com as grandes cervejarias, que de alguma forma englobam todo o resto, e nos dão cervejas que são cervejas, até onde o vai o meu conhecimento, que a gente sempre achou que era uma cerveja tipicamente brasileira, que ela é diferente das outras. É, e aí a gente vai ter, já ouvi pessoas dizendo, ah, no Brasil você toma uma cerveja muito gelada, as cervejas comuns, né? Sim. Muito geladas porque a cerveja é ruim, porque a cerveja é isso ou aquilo. Ou já ouvi brasileiros que vão tomar cervejas fora do Brasil e não conseguem se adaptar. Porque, de fato, as pessoas acham que têm essa sensação de uma cerveja diferente. Sim.

Beber é como um ritual. O ritual põe a gente no lugar, ele dá pra gente essa tranquilidade de que eu sei o que vai acontecer, de que eu sei porque eu tô aqui, de que quando a gente vai em lugares que a gente não conhece, a gente vai buscar pequenos rituais ou vai tentar fazer pequenos rituais pra voltar a sua, digamos normalidade, né. À sua coisa. Então o ritual é sempre positivo, e é claro que também se você for pra coisas muito extremas, a gente que precisa ritualizar o tempo inteiro também é chato mas, né, porque daí a vida fica um pouco menos espontânea. Mas é isso, o ritual serve para isso. E eu acho que assim, se a gente pensar para um lado dos grandes rituais, as grandes comemorações, festas, etc., não existe isso sem comida e bebida. Não existe. Religioso, seja religioso, seja cultural, não existe. Não dá para você pensar, pense em qualquer Natal, Batizado, Páscoa, que vamos ter agora, Carnaval, tanto faz. Comida e bebida são parte do ritual, em qualquer lugar do mundo.

 

Onde está o bar e qual é o papel do bar nessa nossa cultura? Quando a gente fala, e aí podemos trazer não só a cerveja, mas o papel do bar na nossa cultura. Ele é um templo?

 

Paula: Eu diria que pode ser um templo. O templo é muito sagrado, né? Pra mim, o templo tem sempre uma coisa de sagrado, um lugar, eu diria que ele pode ser um templo e pode ser um puteiro também, no sentido de menos sagrado e mais mundano mesmo. Então, eu acho que o bar, ele é um lugar por excelência da bebida. Mas ele não é só da bebida. O bar, assim, a definição de bar… O bar é o estabelecimento público onde você serve bebida e refeição rápida. Essa é a definição mais sintética de um bar. E eu sei porque acabei de fazer um trabalho para um bar que vai nascer. 

E a gente estava discutindo a diferença entre a categoria de bar e de buffet. Então como é que um bar tem uma estrutura, ele tem uma cara, ele tem uma função. Ele é entendido em domínio popular. No Brasil, como às vezes o bar é um restaurante digamos, menos importante, né? De baixa categoria. O que sempre é verdade, tá? Isso é a maneira pela qual as pessoas às vezes entendem. Mas o bar também, por exemplo, é um móvel que tá em casa. E que ele também poderia ser parte desse ritual. Então você tem um bar em casa? Pô, você tem um bar em casa. O que é um bar em casa? Sei lá, minha avó, o bar dela era uma portinha que abria de uma cristaleira, a portinha abria e ela tinha lá um monte de uísques, os copinhos bonitinhos e tal. Tem bar. Minha avó não ia ao bar. Ela tinha o bar. Como, aliás, muitas casas brasileiras, desde 1950, têm um bar dentro de casa. Mas o bar-instituição que eu acho que você está falando, tem uma característica interessante, que é a rua. O que é permitido fazer na rua? Quando a gente olha a comida brasileira, a gente tem uma super separação entre comida de rua e comida de casa. O Brasil é um dos poucos lugares onde a comida de rua é boa se ela está no bar, no boteco. Em geral, ela reproduz a comida de casa nos PFs, o prato feito, o arroz com feijão, os pratos do dia. Essa é a possibilidade. O resto, cachorro-quente, pipoca, churros, sei lá o que vai ter pela rua. A gente vai dizer que não é comida. A gente vai dizer que é bobagem. A gente vai dizer que é besteira. A gente vai fazer essa classificação. Nos outros lugares do mundo não vai existir essa classificação. Você perguntar para um norte-americano se você almoçou, ele vai dizer sim. O que você comeu? Eu comi pizza. Se você perguntar aqui para uma pessoa no Brasil se você almoçou, ele vai falar que hoje não deu tempo. Comeu só uma pizza. Ou seja, eu estabeleço a diferença entre o que a gente chama de comida, que é o que se come de verdade, e aquilo que a princípio você come na rua, mas que não deve ser sempre. Então, o bar, para mim, ele tem essa característica da rua, desse lugar onde acontecem coisas que não acontecem em casa. Por isso que eu brinco que, para mim, ele é menos templo no sentido do santuário e mais um lugar de outras identidades, onde eu consigo exercitar outras identidades. Porque no bar eu posso falar alto, ou falo palavrão, ou no bar eu me comporto de determinadas maneiras que em casa não. Aqui no Brasil, a gente tem os bares, tem os bares que a gente vai chamar de bares mais estruturados, e têm os botecos e botequins, ou birosca, buraco, a quantidade de nome, assim, onde as pessoas vão… Se tiver mulher, é mulher que está lá com uma certa expectativa. Então, Leandro, só para te dizer que, para mim, bar, no caso brasileiro, é uma coisa gigantesca. 

 

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✨Leia também: Cerveja e arqueologia com Sérgio Barra

✨O que bebemos durante o programa? Paula bebe chá de hibisco gelado; Lud bebe Lagunitas; Leandro bebe Best Bitter, da Prússia.

Nana Ottoni

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