A ciência nos detalhes do cotidiano
Quando se pensa em Isaac Newton (1643-1727), é natural que venham à mente os campos e resultados de trabalho desse célebre polímata inglês. Da física à matemática, passando pela ótica e até mesmo pela teologia. Mas, recentemente, um objeto curioso lançou luz sobre outro aspecto menos conhecido de Newton. Particularmente, a manufatura de sua própria tinta para escrever, com um ingrediente para nós pouco óbvio: cerveja.
Em março de 2025, a Royal Society, uma das instituições científicas mais prestigiadas do mundo, anunciou uma nova exposição em Londres, com foco em artefatos pouco conhecidos de grandes cientistas históricos. E, entre eles, um objeto despertou atenção especial, do público e da imprensa especializada: uma caneca usada por Newton, que se acredita ter feito parte de seu ateliê alquímico.
Mais do que um utensílio comum, a caneca propiciou estudos que se aprofundaram na relação do físico com a bebida. Assim, encontraram duas receitas de tinta para escrita. E o detalhe curioso? A cerveja aparece como ingrediente fundamental em ambas.
As fórmulas de Newton
A primeira delas foi encontrada num caderno de anotações de bolso, parte do acervo da Pierpont Morgan Library. É a seguinte:
Como fazer uma excelente tinta para escrever.
Um litro de clarete, vinho branco, água da chuva ou cerveja forte.
Galhas de carvalho, 4/5 onças, ou caparrosa, 4/3 onças.
Goma arábica, 3 onças.
Ictiocola, a quantia equivalente a 2 centavos.
Misture tudo e deixe descansar por nove dias, mexendo uma vez ao dia. Depois, use-a.
Uma colher de chá de sal marinho evitará que mofe e um copo de água de sidra, que congele.
Não deixe que nenhuma partícula de galha ou caparrosa caia na tinta, pois isso obstruirá sua caneta ao escrever.
Outra receita vem do caderno de anotações de laboratório de Newton que é parte da Portsmouth Collection da biblioteca da Universidade de Cambridge. Uma anotação declaradamente escrita com a própria tinta resultante da fórmula em questão:
Para fazer tinta excelente.
½ libra de galha cortada em pedaços ou grosseiramente batida, ¼ libra de goma arábica cortada ou moída.
Coloque-as em um quarto de galão [1 litro] de cerveja forte ou Ale*. Deixe a mistura descansar por um mês, tampada, mexendo de vez em quando. Passado um mês, adicione 1 ou 1 ½ onça de caparrosa (caparrosa em excesso faz com que a tinta fique amarela). Misture e use. Tampe por algum tempo com um pedaço de papel cheio de furos e deixe descansar no sol. Quando você retirar um pouco da tinta, reponha com cerveja forte e ela durará muitos anos. Água a torna propensa a mofar. O vinho não. O ar também, se ficar exposta, a inclina a mofar. Com essa tinta recém-feita, escrevi isto.
*A receita indica colocar os ingredientes “into a Quart of strong beer or Ale”. Distinguindo ales, cervejas tipicamente inglesas nem sempre feitas com lúpulo – utilizando um conjunto de ervas conhecido como gruyt – de beers, nomenclatura continental para as produzidas com lúpulo.
Como era amplamente sabido à época, a cerveja servia como veículo de dissolução e também como conservante natural, graças ao seu teor alcoólico e à presença de compostos orgânicos. O resultado, assim, seria uma tinta de cor intensa, secagem relativamente rápida e boa durabilidade sobre papel ou pergaminho.
Os manuscritos de Newton provam essa durabilidade. Qualquer pesquisador que tenha lidado com eles atesta que sua tinta resistiu ao teste do tempo. Ainda parece quase recém-escrita. De modo que a tinta em si constitui, além da caneca, mais um artefato cervejeiro na trajetória do pensador inglês.
É possível até que Newton tenha redigido seu Philosophae Naturalis Principia Mathematica, de 1687, com a própria tinta de cerveja. Simplesmente o livro em ele que publicou sua teoria do cálculo, suas três leis epônimas do movimento e a teoria detalhada da gravidade.
A fórmula de Austen
Outra figura importante teve seu trabalho marcado no papel com a ajuda de uma tinta caseira feita com cerveja. A célebre escritora inglesa Jane Austen (1775-1817).
Para fazer tinta
Tome 4 onças de galhas azuis de carvalho, 2 onças de caparrosa verde, 1 onça e meia de goma arábica; quebre as galhas; a goma e a caparrosa devem ser trituradas num almofariz e colocadas numa pinta [500 ml] de cerveja forte e velha, junto com uma pinta de cerveja fraca. Adicione um pouco de açúcar duplamente refinado. Deve-se deixar repousar ao lado da chaminé por quatorze dias, agitando duas ou três vezes ao dia.
A receita faz parte do Household Book de Martha Lloyd, amiga e moradora da residência dos Austen no tempo de Jane. Observadora daquela realidade, ela compilou fórmulas e procedimentos domésticos usuais na propriedade da família.
E sabemos que, como boa inglesa, Austen era fã de cervejas, mais especificamente uma grande apreciadora de Spruce Beer, produzindo-a domesticamente.
Cerveja como tinta: uma prática histórica
A ideia de usar cerveja na preparação de tintas pode soar insólita hoje, mas fazia sentido no passado.
Nos tempos de Newton, bebidas em si eram matrizes para a produção de pigmentos havia bastante tempo. O vinho, por exemplo, foi ingrediente essencial em muitas receitas de tintas ferrogálicas — utilizadas pela maior parte do mundo ocidental desde a Idade Média até o século XIX. Da redação da Magna Carta (1297) aos esboços de Van Gogh, passando por anotações de Da Vinci, essas tintas foram uma constante.
Já no contexto científico e artístico inglês dos séculos XVII e XVIII, a cerveja pareceu uma outra opção interessante. Era amplamente disponível, continha açúcares, enzimas e álcool que favoreciam a solubilização de pigmentos e prolongavam a vida útil da tinta. Além disso, os materiais disponíveis na época para esse fim eram limitados, e soluções domésticas ou experimentais não eram incomuns, especialmente entre estudiosos e gente intrépida.
Documentos históricos apontam que, além de Newton e Austen, outros nomes das ciências e das artes também recorreram à cerveja como base para tintas e vernizes, a exemplo do poeta escocês Robert Burns.
A caneca de Newton em exibição
Quanto à caneca de Newton, ela voltou à exibição pública depois de 160 anos!
De acordo com os curadores da Royal Society, ela fazia parte dos objetos pessoais de Newton durante seu tempo como Guardião da Casa da Moeda Real, e, posteriormente, também esteve presente em seus estudos alquímicos e científicos em Cambridge.
O objeto está desde março exposto com destaque na Royal Society, acompanhado de materiais interativos que permitem aos visitantes experimentar digitalmente a mistura da “tinta de Newton” preparada com cerveja. A exposição também inclui cartas e rascunhos manuscritos em que ele possivelmente a utilizou, evidenciando assim a relação de Newton com a bebida através desses artefatos.
O caso da caneca é um lembrete de como grandes descobertas e práticas científicas, por vezes, começam com gestos simples e ingredientes cotidianos. A cerveja, símbolo universal de convivência e celebração, aqui aparece como ferramenta de escrita e experimentação.
Curiosamente, mesmo sempre bem estocado de cerveja, sidra e vinho, Newton parece ter sido um sujeito deveras abstêmio. Um assistente de laboratório afirmou, em 1728: “Não posso dizer que já o vi beber vinho, cerveja ou cerveja, exceto nas refeições, e mesmo assim com muita moderação”.
Ainda assim, ao explorar a interseção entre alquimia, ciência e materiais triviais, o polímata, através desse ingrediente tão comezinho, deixou um enorme legado para as ciências.
Nessa linha, a exposição da Royal Society convida o público a olhar para a Ciência com novos olhos. Não como algo distante e abstrato, mas como algo profundamente enraizado nas práticas e objetos do dia a dia.
E, quem sabe, ao brindar com uma cerveja, você se lembre de que até mesmo o grande Newton via nesse líquido dourado um instrumento de criação. 🍻