No episódio 12 da segunda temporada de Encontros Selvagens, vamos falar sobre a cerveja Lambic/Gueuze e como representada toda uma identidade. Quem participa desse papo são Gert Christiaens da Oud Beersel, Cilene Saorin, na mediação e com tradução de Adessio Simioni.

👉 Encontro Selvagem é um programa realizado pelo canal Surra de LúpuloAbracerva, e com apoio nesta temporada do Conselho Federal de Química, CFQ. Sigam @encontroselvagem no Instagram e não percam nenhum conteúdo.

 

Ouça agora na íntegra:

 

 

Lambic/Gueuze – Mais que cerveja, identidade

 

cerveja lambic

Vamos atravessar agora o Atlântico, falamos de Cauim, povos originários do Brasil, falamos sobre povos andinos, a Chicha, e agora vamos falar sobre Lambic, da Bélgica.

Hurt se apresentou como proprietário e Master Blender da Oud Beersel. Ele tem 46 anos e contou que em 2002 estava em Bruxelas, onde trabalhava com telecomunicações. Em seu bar favorito, bebendo Oud Beersel, sua cerveja preferida, soube pelo dono do bar que aquelas seriam as últimas garrafas disponíveis, pois a cervejaria estava fechando. Em 2002, há 12 anos, desde 1990, a Oud Beersel era administrada pelo sobrinho de Henry Van Der Velten, o proprietário. Este, aos 65 anos, decidiu parar de trabalhar devido à natureza laboriosa do trabalho, que incluía lidar com barris. Assim, seu sobrinho assumiu os negócios por 12 anos, até decidir encerrar a produção e manter apenas o bar.

Ao saber da notícia, Hurt teve que decidir entre encontrar uma nova cerveja favorita ou assumir a produção da Oud Beersel. Ele optou pela segunda opção. Henry, com 77 anos, afirmou que não poderia retomar a produção devido ao esforço físico exigido. Nos quatro a cinco anos seguintes, ele ensinou muitas coisas a Hurt, que também fez cursos de cervejeiro para revitalizar a marca e lançar novos produtos a partir de 2005. Quando Henry Van de Vervoordt decidiu fechar, ele era a quarta geração, e a cervejaria, fundada em 1882, encerraria as operações em 2002.

Ao assumir a produção da Oud Beersel, Hurt não tinha conhecimento sobre fabricação de cerveja, apenas sabia como apreciá-la. Ele começou a seguir cursos de cerveja na Bélgica, apesar de sua formação em economia com TI e gestão. Gradualmente, ele aprendeu com o velho mestre cervejeiro e, em 2005, relançou a Oud Beersel, começando com a produção de Triple Beer para obter recursos e investir em lambic tradicional. Produzir um gueuze tradicional requer três anos e meio, e graças às vendas do primeiro Triple Beer, foi possível iniciar a empresa.

oud beersel lambicHurt começou como hobby e, passo a passo, deixou seu emprego em 2007 para se dedicar integralmente à cervejaria, sem receber salário. Só em 2009 ele conseguiu pagar seu próprio salário pela primeira vez e contratou o primeiro funcionário em 2011. A empresa cresceu gradualmente, e atualmente conta com seis pessoas, incluindo Hurt. Eles produzem cerca de 1.800 hectolitros anualmente, o que, embora não seja uma grande quantidade, representa um foco dedicado ao projeto da Oud Beersel.

Além de seu trabalho na Oud Beersel, Gert também é presidente da Horal, o Conselho das Cervejas Tradicionais Lambic. Com a Horal, ele representa 12 dos 15 produtores de lambic. A Horal tem como objetivo a promoção e a proteção das cervejas lambic tradicionais. A proteção refere-se principalmente às gueuzes e krieks tradicionais, chamadas Oude Gueuze e Oude Kriek. “Oude” significa “velho”, indicando a antiga forma de produzir gueuze e kriek. Esses produtos são protegidos a nível europeu no que se refere ao método de produção, sendo identificados por logos em azul.

Na Bélgica, não há outras cervejas que tem esse tipo de proteção. Para promover o lambic, a Horal organiza eventos como a Toer de Geuze, que acontece a cada dois anos. Esse evento é uma espécie de dia aberto para todos os produtores de lambic. Durante o fim de semana, os visitantes podem conhecer todos os produtores, em vez de participar de um festival de cerveja onde todas as cervejas são levadas a um único local. Na Toer de Geuze, os visitantes vão de uma cervejaria a outra, com ônibus circulando entre elas. Este é um dos eventos mais importantes do setor lambic, atraindo entre 10 e 20 mil pessoas.

Além disso, a Horal está trabalhando no desenvolvimento do turismo. A ideia é colocar a região ao sul e oeste de Bruxelas no mapa como a região do lambic, com todas as suas atividades, não apenas diretamente relacionadas ao lambic, mas integradas ao conceito de “terra lambicada”. Isso ajudará o setor a ganhar mais visibilidade, permitindo que mais pessoas descubram as cervejas lambic tradicionais. Apesar de serem conhecidas mundialmente, essas cervejas ainda são um produto de nicho e sempre serão. Trabalhando juntos, os produtores podem alcançar muito mais do que fariam individualmente. Isso é a Horal.

Alguns séculos atrás, toda a região ao redor de Bruxelas, principalmente a oeste e ao sul de Bruxelas, contava com centenas de cervejarias produtoras de Lambic, aproximadamente 200. Em 2002, restavam apenas nove produtores, dos quais oito eram membros da Horal. A Horal foi fundada em 1993. Hoje, são 15 membros e, nos próximos anos, espera-se que esse número chegue a 20, pois muitos produtores já tinham um grande estoque de lambics antes da pandemia. Assim, em dois ou três anos, eles já poderão lançar uma Oude Gueuze. No entanto, devido à pandemia e à guerra na Ucrânia, espera-se que esse número cresça até cerca de 20, estabilizando-se em torno de 15 produtores.

Lambic é um estilo muito particular de cerveja. Trata-se de uma cerveja de fermentação espontânea. Nós guiamos a cerveja mais do que forçamos os elementos naturais a se conformarem ao que desejamos. Portanto, temos algum controle sobre o processo de fermentação, mas é a natureza que realiza a inoculação. Podemos controlar a temperatura e, se quisermos, a umidade em nossas salas de fermentação, mas a fermentação é inteiramente natural.

Estamos falando de fermentação natural, de fermentação espontânea. Estamos aqui em um festival de cervejas ácidas e, na verdade, ao fazer Lambic, não temos a intenção de produzir cerveja ácida. Nossa intenção é fazer uma cerveja naturalmente fermentada. No entanto, devido ao processo de fermentação, que dura mais de um ano, passamos por diferentes fases de fermentação. Há uma fase de fermentação antibacteriana, uma de fermentação de Saccharomyces, seguida por uma fase de acidificação. Nesta fase de acidificação, ocorrem fermentações láctica, malolática e acética, todas conduzidas pela natureza. Essas fermentações acontecem fora do controle do cervejeiro, mas podemos guiar a temperatura para controlar a intensidade desses processos e a quantidade de acidez produzida nos barris.

Para completar a história sobre a fermentação, temos uma fermentação selvagem com leveduras selvagens, que não são cultivadas em laboratório. Essas leveduras têm a capacidade de fermentar todos os açúcares, até os mais complexos. Nossa cerveja torna-se muito seca, pois todos os açúcares são completamente fermentados. Assim, temos uma cerveja seca e saborosa, mas completamente guiada pela natureza. Nós apenas ajudamos a natureza a alcançar um resultado muito refinado.

 

Gert diz: “O que o homem faz é na verdade ajudar a natureza a cumprir o que está sendo feito ali. Mas a fermentação espontânea, como a inoculação é feita a partir do ar, os micro-organismos que estão presentes ali, por mais que façam controle de temperatura da sala de barris ou qualquer outro tipo de intervenção humana, no final das contas o resultado é um resultado que vem da natureza, porque não é feita uma seleção de leveduras.”

 

Se olharmos o processo de produção de Lambic e como ele está ligado à região, veremos que o Lambic tem quatro ingredientes principais: malte de cevada, trigo não maltado, água e lúpulo. Originalmente, todos esses ingredientes vinham da Bélgica. A água também, pois estamos na região do rio Sena. Os produtores de Lambic estão localizados ao longo do vale do rio Sena. O trigo também era produzido na região de Asse, que fica a meia hora de Bruxelas, então era trigo local. Porém, os lúpulos usados na Bélgica sempre foram lúpulos amargos, diferentes dos lúpulos aromáticos, como os lúpulos americanos que temos hoje.

 

“Como a nossa cerveja se torna seca devido ao processo de fermentação, precisamos de lúpulo para a conservação. Precisamos de muitos lúpulos para o Lambic, pois fermentamos e envelhecemos essa cerveja em barris de madeira. Usar muitos lúpulos adiciona muito amargor, então usamos lúpulos da nossa região, mas começamos a comprar estoques excedentes como setor. Há 5 ou 10 anos, havia uma grande demanda por lúpulos e muitos não estavam mais disponíveis, então tivemos que começar a estocar e envelhecer lúpulos. No envelhecimento e oxidação dos lúpulos, não os mantemos em recipientes hermeticamente fechados, mas os expomos ao ar, pois queremos oxidá-los. Ao oxidar os lúpulos, obtém-se um efeito semelhante ao de uma IPA que perde seu sabor original com o tempo, pois o amargor se dissipa.”

 

Além dos lúpulos, é utilizado malte de cevada, que é obrigatório por lei na Bélgica, com um mínimo de 60% de uso em qualquer tipo de cerveja. É utilizado até 40% de trigo não maltado. Na verdade, os Lambics datam dos anos 1300, quando a cerveja de trigo era produzida. Havia cervejas de trigo para consumo rápido e outras para conservação. Na região onde estamos, os terrenos são muito férteis, ideais para cultivar trigo. Houve uma produção suficiente de trigo, e no século XVII, o rei decretou que toda a cerveja produzida nessa região deveria conter trigo, pois isso dava um sabor mais completo e refrescante à cerveja, um caráter apreciado pelo rei.

Portanto, por lei, o Lambic precisa conter malte de cevada, trigo não maltado, lúpulo e água. Quando falamos de Lambic, estamos falando da região do vale do rio Sena e do Pajottenland. Ao olhar no mapa, vemos que essa é justamente a região onde estão os produtores de Lambic.

Gert explica um dos motivos para dar continuidade ao legado de produção das Lambics:

 

“Não estou a favor de como os alimentos são produzidos em direção ao mainstream e de todos os tipos de aditivos que nos permitem consumir, assim como de como a sociedade está mudando por causa dos novos hábitos alimentares. Prefiro os alimentos tradicionais, os alimentos originais, a paixão, a cultura, o tempo que as pessoas investem na descoberta desses processos, ao invés de reduzi-los a pedaços menores. Acredito que a maioria das doenças que temos hoje em dia vem da fragmentação da nossa cadeia alimentar. Ao salvaguardar o Lambic, quero garantir que um produto autêntico esteja disponível, mesmo que vivamos em um mundo completamente diferente, onde as pessoas estão consumindo qualquer tipo de produto, principalmente os de grandes fábricas, sem saber mais o que realmente estão consumindo.

Claro, muitas pessoas não entenderão como o Lambic é feito, pois é um processo bastante complexo e com uma produção muito longa. Mas para as pessoas que apreciam esse tipo de produto, e provavelmente a maioria de vocês está com essa mentalidade, é que esses produtos têm sabor. Se não fosse assim, vocês não estariam aqui.”

 

Gert segue comentando que localmente, a Oud Beersel vende 70% de suas cervejas Lambic na Bélgica. Há uma grande comunidade apreciadora de Lambic, e não são apenas os entusiastas de cerveja. Muitas pessoas na Bélgica gostam das cervejas Lambic porque é um produto regional. Provavelmente, isso também faz parte da cultura alimentar do país, e as pessoas estão acostumadas com esses sabores e apreciam os Lambics. Além disso, na Bélgica, não há custos de exportação, o que torna a venda local mais viável do que a venda fora do país.

 

 

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Nana Ottoni

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