No episódio 39 do Surra de Lúpulo, nosso podcast de cerveja artesanal, mergulhamos na profundidade intelectual de Cilene Saorin, mestre-cervejeira, sommelier de cervejas e uma das grandes referências brasileiras no mercado cervejeiro nacional e internacional, para falar sobre terroir, o potencial do mercado cervejeiro nacional e a possibilidade de uma escola cervejeira brasileira.

Apaixonada pelas expressões artísticas em suas mais variadas formas, Cilene abre o programa contando como a pintura expressa uma igualdade de sofisticação entre o vinho e a cerveja que, ainda hoje, para muitas pessoas, é desconhecida. “certa vez assisti um concerto de Mozart em Viena e reparei que, em um dos afrescos no teto da câmara, havia anjinhos de um lado segurando uvas e, do outro, cereais. Esse registro deixa claro que não há absolutamente qualquer oposição entre os elementos: os anjos estão segurando tudo que alimenta a humanidade há mais dez mil anos”, explica Saorin.

A partir desse momento, a sommelier se dedicou a traçar outros paralelos artísticos que evidenciassem ainda mais a não existência de uma diferenciação entre as duas bebidas. “Uso o exemplo de um autorretrato do pintor barroco Rembrandt, no qual ele está abraçando a esposa por um lado e, na mão oposta, segurando uma cerveja. O quadro é de meados do século XVII. Naquela região de Flandres, era cerveja que se bebia e, assim como Velásquez retratando o vinho mais ao sul da Europa, na Espanha, Rembrandt estava pintando seu cotidiano. Essa percepção veio de uma busca de referências estéticas que pudessem me ajudar a criar argumentações de maior percepção de valor em relação à cerveja, de um modo equivalente ao que os sommeliers de vinho buscam e conseguem obter.”

Terroir cervejeiro

Terroir: conceito que remete a um espaço no qual está se desenvolvendo um conhecimento coletivo das interações entre o ambiente físico e biológico e as práticas enológicas aplicadas, proporcionando características distintas aos produtos originários deste espaço.

Cilene explica que o conceito de terroir vem de um termo francês para “confluência” e significa, como bem definiu a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) acima, o resultado da junção entre os aspectos da geologia (solo e micro-solo), da climatologia (clima e microclima) e da geografia (localização geográfica dos dois aspectos anteriores).

“Pensando em cerveja as mesmas influências se aplicam, ainda que não tenhamos

muita expertise nesse campo. Se pensamos na água, por exemplo, vemos uma enorme influência de terroir que se aplica à cerveja. A água brasileira é de poucos sais, mais alcalina. Já na Inglaterra, mais sulfurosa e vulcânica. Isso cria padrões completamente diferentes de feitura e padrão sensorial em uma cerveja. O Brasil, com seis macrobiomas riquíssimos, é um país com imenso potencial de terroir, mas com um longo caminho a percorrer, sobretudo, no aspecto da consciência ambiental e de como podemos melhor utilizar nossos potenciais agrônomos”.

Uma escola cervejeira brasileira?

“A cozinha converte a natureza em cultura – Claude Lévi-Strauss”

A frase do antropólogo francês resume, para Cilene, também o que é a cervejaria e como podemos explorar o potencial cervejeiro brasileiro. “Temos uma natureza riquíssima em mãos, reservas naturais de água como em nenhum outro lugar no planeta, e, portanto, a possibilidade de explorá-la de forma inteligente a fim de que o resultado dessa intervenção se transforme numa expressão cultural única da nossa identidade. Lucidez e boas escolhas são necessárias para reverter o cenário ambiental que enfrentamos hoje”.

Se pensarmos que o Brasil é um país de apenas 500 anos – justamente o tempo que a escola de cervejaria alemã levou para propagar seus métodos e sabores em todo o mundo –, logo fica claro que será preciso paciência para alcançar um patamar tradicionalmente reconhecido de escola cervejeira. Saorin destaca que potencial, no entanto, não nos falta. “No Brasil, nós temos nas mãos os três pilares que formam o conceito de escola cervejeira: terroir; uma capacidade inventiva de expressar nossas potencialidades; e domínio técnico para convergir os dois primeiros aspectos.”

É claro que tudo isso leva tempo, ao passo que um quarto pilar destacado por Saorin também se mostra fundamental: comunicar corretamente e educar o mercado brasileiro de cervejas pensando em consumo inteligente. “É importante pensarmos em um mercado com maior diversidade e inclusão. Existem grupos em potencial que não consomem determinados tipos de cerveja porque não se veem representados. A questão dessas pessoas não é exclusivamente o poder aquisitivo, mas carecer da informação que promove a seguinte virada de chave: preferir beber um copo de uma cerveja que provoca outras possibilidade sensoriais do que três latinhas de uma cerveja comum. Somos um país que está envelhecendo a galope e temos cada vez mais pessoas passando por esse ponto de mudança. E é aqui que deixo a seguinte pergunta: os profissionais do mercado cervejeiro brasileiro serão capazes de apresentar outras formas de consumo que instiguem as pessoas, que as façam vibrar com a cerveja em outro patamar? Fazer cerveja não é só fazer um bom líquido, é pensar no ser humano, em como a cervejaria é uma expressão cultural como a música ou a pintura, é viabilizar um projeto de explorar com sabedoria nossos potenciais naturais e humanos”.

 

 

Surra de Lúpulo

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